É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 17/12/2019
Na fábula, lidamos com aquilo que um poeta francês chama de “a presença das coisas ausentes”
O poeta e ensaísta Paul Valéry, no prefácio às Cartas persas, do filósofo Montesquieu, afirma que a ficção reconstrói a realidade e oferece a ela uma outra forma de pensamento e de apreensão do real, espantando a ideia rasa do senso comum que atribui à arte o papel de sonho e de fuga da realidade:
“Como barbárie é a era do fato [grifos meus], é necessário, pois, que a era da ordem seja o império das ficções – porque não existe potência capaz de fundar a ordem apenas sobre a repressão dos corpos sobre os corpos. É preciso a força da ficção […] A ordem exige, portanto, a ação de presença das coisas ausentes […].” Assim, Valéry sugere que a ficção, como obra criadora e criativa, interpõe-se entre o fato e os indivíduos – criando uma ordem nova de compreensão do mundo e da realidade.
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As fábulas, por exemplo, são narrativas ficcionais que buscam, de forma alegórica, dar voz a animais que personificados transcendem o plano do real e do fato e instauram uma simbologia que o explica com a agudeza que só a literatura e a figuração são capazes de oferecer. Uma fábula não pode ser lida literalmente, é claro; uma vez que os animais não agem e não pensam conforme as disposições propostas nos textos. Eles são aquilo que o poeta francês sugere como “a presença das coisas ausentes”, porque na história protagonizada por eles há invariavelmente a ausência do homem nas ações, mas a presença dele é inferida nos arquétipos e nas simbologias aludidas.
Entre as inúmeras fábulas que pensam o mundo e os seus acontecimentos, há uma bastante cara ao nosso tempo, O lobo e o cordeiro, de Jean de La Fontaine, que transcrevo a seguir:
Um cordeiro estava bebendo água num riacho. O terreno era inclinado e por isso havia uma correnteza forte. Quando ele levantou a cabeça, avistou um lobo, também bebendo da água.
– Como é que você tem a coragem de sujar a água que eu bebo – disse o lobo, que estava alguns dias sem comer.
– Senhor – respondeu o cordeiro – não precisa ficar com raiva, porque eu não estou sujando nada. Bebo aqui, uns vinte passos mais abaixo, é impossível acontecer o que o senhor está sugerindo.
– Você agita a água – continuou o lobo ameaçador – e sei que você andou falando mal de mim no ano passado.
– Não faz sentido – respondeu o cordeiro – no ano passado eu ainda não havia nascido. O lobo pensou um pouco e disse:
– Se não foi você, foi seu irmão, o que dá no mesmo.
– Eu não tenho irmão – disse o cordeiro – sou filho único.
– Alguém que você conhece, algum outro cordeiro, um pastor ou um dos cães que cuidam do rebanho, e é preciso que eu me vingue. Então, ali, dentro do riacho, no fundo da floresta, o lobo saltou sobre o cordeiro, agarrou-o com os dentes e o levou para ser devorado num lugar mais sossegado.
A fábula revela o comportamento obtuso e violento do lobo, que tapa ouvidos e olhos para os fatos e os argumentos arrolados pelo pobre cordeiro. Diante da sanha de matar a fome, o lobo recria os fatos e os molda às suas necessidades. Na narrativa, a omissão da figura humana é a tal da “presença ausente”. Após a leitura, não há como não a evocar.
Em nossos tempos, vivemos um momento insólito de barbárie e de convicções lupinas em que os fatos reais passam a ser fictícios, como numa realidade. Não se pode negar que um fato possa ter muitas versões, diversas causas e variadas consequências. Mas nenhuma versão pode e deve mudá-lo, forjando um novo acontecimento. Este é rígido, pétreo e imaculado, não há força das águas e das explicações que possam alterar a sua ordem soberana. A não ser que a vontade da alcateia se imponha, roa e manche o fato à força.
Negar, por exemplo, que as queimadas na Amazônia sejam um acontecimento alarmante e desastroso é, em si, criar uma nova ordem lupina e inventar uma ficção onde não cabe literatura.
O dramaturgo e polemista Nelson Rodrigues, torcedor fanático do Fluminense, soltou uma das frases mais conhecidas do seu rico repertório sarcástico, que propõe com graça a mesma tergiversação: “Eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E podem me dizer que os fatos provam o contrário, que eu vos respondo: pior para os fatos”. A frase, compreendida como ironia fina nos tempos do escritor Nelson Rodrigues, perde a literatura e a conotação sarcástica em nossos tempos e ganha campo de batalha linguística e ideológica como uma possibilidade real e perigosa de impor ao fato uma verdade obtusa e esquisita. Pior para os fatos.
*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Uma fábula sobre quando o pulo do gato de um professor entusiasma os alunos