NOTÍCIA
É importante que o professor busque se alimentar de teorias e práticas voltadas para o aprimoramento do ensino e da aprendizagem. Antes de se pensar em “como se ensina”, é necessário saber “como se aprende”
Publicado em 25/05/2019
Por Lilian Cristine Hübner, da revista Neuroeducação*: Em todo início de ano letivo, vemos crianças cheias de expectativas, felizes por retornar ao ambiente escolar, reencontrar seus amigos, conhecer os novos professores e colegas, ver o que de novidade a escola lhes oferece. Junto com isso, há entre as crianças dos anos iniciais a vontade de dominar um novo código, as letras, que lhes abrirão as portas à leitura, como uma chave para sua autossuficiência para acessar o conhecimento que quiserem obter, os jogos – digitais ou não – de que quiserem desfrutar, enfim, alcançar o acesso independente ao mundo letrado. Aprender a ler e a escrever é, sem sombra de dúvida, um dos maiores marcos da infância – embora em alguns casos ocorra em momento posterior.
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Mas quando e onde ocorre a iniciação da criança à leitura e à escrita? A resposta é simples: na família e na educação infantil, ambas sustentadas pela valorização social e por políticas de promoção da leitura.
Saber ler e escrever é essencial para o sucesso na escola e ao longo da vida. Assim sendo, não nos surpreende o destaque dado pela imprensa aos baixos índices em leitura (e em conhecimento matemático) das nossas crianças e pré-adolescentes na comparação com os índices obtidos em outros países. E, sempre que há insucesso, buscam-se os “culpados”, quando a corda muitas vezes rompe no professor. No entanto, os fatores iniciais geradores do baixo desempenho podem estar no convívio familiar e no acesso à educação infantil, ou seja, bem antes do ingresso no ensino formal da leitura e da escrita.
Em relação à família, em muitos casos de meio socioeconômico baixo, a criança é praticamente privada do acesso a livros infantis, da contação de histórias, da observação da prática da escrita e da leitura entre as pessoas que a rodeiam. Nesses casos, ao ingressar no ensino formal, a criança parece estar diante mesmo de outra língua, quase como se fosse estrangeira, pois a variedade linguística de seu meio pode divergir bastante daquela com a qual se depara na escola. Há pesquisadores que defendem a existência de dois grupos de leitores deficientes nos estágios iniciais da aprendizagem da leitura: leitores com decodificação ineficiente (caracterizados por uma leitura lenta e inacurada) e leitores cuja deficiência decorre de um reduzido conhecimento da linguagem oral em termos de vocabulário, de estruturas gramaticais e de outras questões linguísticas importantes para a compreensão leitora. Essa última deficiência pode decorrer da exposição reduzida ao tipo de linguagem oral e lida usada na escola. Diversos estudos têm se debruçado e trazido evidências científicas sobre o impacto na formação do letramento infantil decorrido do acesso à leitura e à escrita bem antes do ensino formal.
Além da relevância da família, salienta-se o papel importante da educação infantil, cuja atuação como precursora da alfabetização é ainda desconhecida por muitos pais. Nela são desenvolvidas habilidades que alavancarão a aprendizagem da leitura, como a consciência fonológica (por meio de jogos lúdicos com rimas e aliterações), o incremento de vocabulário por meio das histórias infantis, a introdução dos nomes e dos sons de letras do próprio nome e dos colegas e professores, a manipulação oral de palavras (segmentações de palavras e supressões de sílabas), entre outras habilidades. A aquisição precoce dessas habilidades formará os fundamentos para a aprendizagem da leitura e da escrita. Infelizmente, em nosso país ainda há crianças cujo acesso à educação infantil não é viabilizado, o que faz com que tais habilidades sejam desenvolvidas apenas mais adiante, concomitantemente ao ensino formal, em especial em crianças advindas de classes sociais menos favorecidas e/ou de um meio familiar de baixo acesso e uso da leitura e da escrita.
Em suma, tratou-se aqui de enfatizar a importância do acesso ao uso social da leitura e da escrita antes do ingresso na escola para ressaltar-se que a aprendizagem da leitura é responsabilidade social, não apenas do professor, mas também da família. Tratou-se também da garantia ao acesso à educação infantil em uma sociedade que, mais do que suprir necessidades biológicas básicas da criança, deve prover a ela o acesso a bens culturais, mediados pela leitura e pela escrita.
Em termos simples, que espécie de habilidade é essa de ler? E a de escrever? Uma teoria surgida nos anos 1970 apregoava que aprender a ler seria tão fácil e natural quanto aprender a falar e que a diferença estaria nos sinais: na fala os sinais seriam sonoros, enquanto na escrita e na leitura seriam visuais, escritos. Mais especificamente, assim como ocorre com a aquisição da fala, na aprendizagem da leitura e da escrita a criança se empenharia para dar ou buscar sentido desde que o contexto fosse interessante e significativo, a exemplo do que acontece com a fala. De modo similar, o linguista Ken Goodman, nos anos 1980, postulou que o uso da leitura e da escrita em contexto com significado é algo simples e natural para a criança.
Em oposição a essa ideia pode-se mencionar o pressuposto de alguns linguistas e psicólogos cognitivos que lembram o fato de que uma criança dificilmente aprenderia a ler e a escrever sem instrução e que, mesmo recebendo-a, esse processo demandaria esforço e tempo. O que está na base desse pressuposto é o simples fato de que, enquanto a fala é um processo natural, a leitura e a escrita são processos culturais, portanto aprendidos. Como afirma o neurocientista Stanislas Dehaene, a escrita surgiu entre os babilônios há aproximadamente 5.400 anos, enquanto o alfabeto não tem mais de 3.800. Como nossa linguagem estava programada para uma tradição oral, o cérebro teve de se adaptar para acolher e processar essa invenção cultural, visual, que é a escrita.
A esse processo de adaptação, Dehaene chamou de “reciclagem neuronal”, em que circuitos cerebrais, relacionados à linguagem e à visão, se adaptaram para outro fim – a leitura e a escrita – adaptação que demanda aprendizagem. Ou seja, enquanto ouvir e falar são aspectos inatos, como mencionado pelo linguista e cientista cognitivo Noam Chomsky, ler e escrever são invenções culturais, aprendidas, as quais demandaram uma readaptação cerebral para sua aprendizagem. Aí, obviamente, entra o papel do adulto, em geral o professor, que apresentará à criança, de forma sistematizada, um sistema convencional e arbitrário, de representação da cadeia sonora da fala. Essa é a faceta linguística da aprendizagem da leitura e da escrita, fundamental para a formação do leitor, em que lhe devem ser ensinados explicitamente o sistema alfabético e as normas ortográficas, para o reconhecimento de palavras, o qual deve se tornar automático a partir da prática.
Mais especificamente, deseja-se ressaltar aqui que, sem automatizar o processo de transformar sinais gráficos lidos – os grafemas – em fonemas, a criança não pode ser considerada uma leitora competente. A transposição desse estágio inicial de decodificação dos grafemas em fonemas para a identificação automatizada de palavras, ou seja, o alcance da leitura fluente, é essencial para a formação de um leitor proficiente. A criança ou jovem que luta com as palavras na tentativa de decifrá-las ao ler sobrecarrega sua memória de trabalho e sua atenção, reduzindo recursos cognitivos necessários para uma compreensão mais global do texto. Por isso, a leitura flluente, que se intensifica pelo encontro recorrente com as palavras, deve ser um dos objetivos fundamentais no início da alfabetização.
Entretanto, ser um leitor competente não se resume a alcançar uma leitura fluente. Como afirma a educadora Magda Soares, uma das maiores referências do Brasil no tema da alfabetização, essa é apenas uma das facetas do ensino da leitura e da escrita. Segundo a pesquisadora, para atingir-se o letramento aliam-se a esta duas outras facetas, tão importantes quanto a primeira: a faceta interativa, que inclui, entre outros aspectos, habilidades de interpretação, compreensão, produção textual, ampliação de vocabulário e apreensão de convenções a que textos escritos obedecem, e a faceta sociocultural, em que se inserem o conhecimento e a prática de usos, funções e valores sociais da escrita em eventos de letramento.
Finalmente, cabe ainda salientar dois aspectos. O primeiro diz respeito ao que se entende por leitura. A resposta pode variar dependendo do ponto de vista adotado: linguístico, cognitivo, social, literário, entre outros. Assim, poderia variar desde uma visão simplória, em que ler é reconhecer palavras, ou ainda, apenas atribuir sentido, até uma visão complexa, agregando aspectos linguísticos, cognitivos e sociais. A visão do que venha a ser leitura vai determinar a forma como esta será desenvolvida pelo professor em aula. O segundo ponto a destacar é a diferença entre a própria leitura e a escrita em relação à fala. Ao escrevermos, precisamos adotar as convenções da escrita, como a pontuação, a distribuição em parágrafos, a observância à estrutura textual, de modo a tornar nosso texto claro e compreensível, uma vez que não dispomos de recursos da fala, como gestos, expressões faciais, pausas, hesitações, elementos que facilitam a compreensão de questões discursivas e pragmáticas que podem, por exemplo, indicar ironia e humor. Na leitura, conseguimos detectar as convenções da escrita. No entanto, ao escrevermos, precisamos dominar essas técnicas, necessárias para veiculação do sentido.
Enfim, a ponta do funil – a escola e o professor: o que fazer para auxiliar o processo de aprendizagem da leitura e da escrita? Sugerimos algumas práticas que podem melhorar a eficiência de leitura e de escrita de crianças e adolescentes.
Na oralidade, o contexto está posto: conhecem-se os interlocutores e a situação de interlocução, avaliam-se gestos, tom de voz e expressões faciais, o que auxilia na geração de inferências e na percepção de implícitos. Já na leitura, muitas vezes nos deparamos com uma ausência do contexto situacional que ampare a compreensão linguística. Porém, mais ainda do que na leitura, é na escrita que os alunos mais claramente percebem suas maiores dificuldades, ao verificar que não se pode escrever do mesmo jeito como se fala. É necessário adequarem-se termos, estruturas frasais, respeitando as características dos gêneros textuais e incluindo sinalização de aspectos pragmáticos detectáveis sem os recursos de que dispomos na fala (como, por exemplo, uma piscada de olho para indicar quando estamos sendo irônicos). Nesse sentido, o trabalho de escrita e reescrita é crucial em sala de aula na busca da instrumentalização do aluno para aprimorar essa habilidade especificamente.
A leitura hoje se dá em diversos suportes, apresentados de forma digital ou impressa, mas alguns professores, mesmo mais jovens, resistem à incorporação da internet e de tablets e afins no ambiente escolar. No entanto, há que se considerar que nossos leitores mudaram: percebe-se que, em especial para muitas crianças mais velhas e adolescentes, ler um livro de porte médio parece ser enfadonho, uma vez que os textos digitais costumam ser mais curtos e apelativos visualmente, com links convidativos à exploração. A tecnologia e a internet são tão apelativas que até mesmo bebês são atraídos aos celulares e tablets, que funcionam como calmantes em determinadas situações, como em salas de espera.
Por mais conservador que se seja em adotar computadores e internet em sala de aula, ou ainda, por maiores que sejam as dúvidas ou as inquietudes quanto ao que será das funções da memória humana e da capacidade de atenção num mundo bombardeado por informações, há que se concordar que estamos em um caminho sem volta. Então, o que poderia o professor fazer para lidar com esse novo contexto? Assumi-lo, render-se a ele, sem, no entanto, deixar seus alunos navegando na internet como ilhas isoladas (como o que vemos nos ambientes sociais, como em restaurantes, em que em geral as pessoas ficam absortas em seus celulares sem interagir olho no olho).
O professor poderia apresentar e explorar com os alunos os diferentes gêneros textuais que ali se encontram, discutindo os elementos micro e macrolinguísticos ali presentes, as escolhas lexicais e suas implicações, o contexto em que o texto se insere e o público que pretende atingir, o pensamento e objetivos que procura veicular, entre outros aspectos. Mas para isso é necessário que o professor se desarme e busque se capacitar para ter na tecnologia uma aliada, e não uma ameaça. Por exemplo, a pesquisa na internet pode instrumentalizar o aluno com o conhecimento para escrever a respeito de um assunto sobre o qual pouco conhece – e aqui novamente cabe a atuação do professor para guiar o seu aluno a buscar fontes confiáveis de pesquisa. Em suma, a leitura e a escrita digitais chegaram para ficar e tomar um espaço cada vez maior entre nós, por isso devem ser bem empregadas em sala de aula. No entanto, é importante ressaltar que a promoção da leitura de impressos deve seguir tendo um espaço de relevância em sala de aula, a qual passa a representar, assim como o ambiente familiar, um espaço em que a leitura de informação e a literária impressas continuem prestigiadas.
Mesmo que as crianças pareçam cada vez mais precoces em termos digitais, a importância do professor como mediador entre elas, o conteúdo e a linguagem (seja ela impressa ou digital) será sempre fundamental, para discutir implícitos, o dito e o não dito, as implicaturas, os objetivos do interlocutor expressos em suas escolhas vocabulares e na forma de articular suas ideias. Além disso, antes de se pensar nesses “objetivos maiores” do professor mediador, cabe ainda a ele a ação mais básica e fundamental no processo de alfabetização – o acesso à decodificação e codificação das letras rumo à fluência e à autonomia leitora, como discutido acima, indispensável para a alfabetização em seu sentido mais amplo, incluindo-se aí a noção de letramento, impresso e digital.
O professor e a escola deveriam mostrar aos pais e à sociedade em geral que o desenvolvimento da leitura e da escrita não é uma tarefa solitária do docente. Ao contrário, o uso social da leitura e da escrita se inicia no seio familiar e sua promoção deve começar muito cedo, assim que a criança demonstre capacidade de atenção e interesse por ouvir histórias e manipular livros infantis. A mediação leitora dos pais promove a ampliação do vocabulário e expõe a criança a variadas formas de textos, em especial os narrativos no início, o que instrumentalizará a criança para receber o posterior ensino formal. Essa interação com material escrito deveria ocorrer também nas famílias com menor poder aquisitivo, para prover oportunidades mais equilibradas a todas as crianças, independentemente de classe social.
É importante revisar a própria prática docente, mantendo a preocupação com o como aprendemos. Estimular o espírito questionador e pesquisador é fundamental num mundo que exige adaptação rápida e constante dos indivíduos. Mesmo que planejamento de aulas e correções de tarefas dos alunos absorvam bastante tempo, é importante que o professor busque se alimentar de teorias e práticas voltadas para o aprimoramento do ensino e da aprendizagem.
Por exemplo, para escolher um método de ensino, é importante, além de ter conhecimento das características da faixa etária com que se interage, saber como esse aluno aprende, compreendendo quais aspectos biológicos, sociais, cognitivos e afetivos estão envolvidos no processo de aprendizagem. Ou seja, antes de se pensar em “como se ensina”, é necessário saber “como se aprende”! Para isso, pode-se buscar amparo, por exemplo, em recentes descobertas da neurociência, que tem trazido subsídios aplicáveis ao contexto do ensino.
Entre essas evidências, podem ser citadas algumas como de suma importância: a sesta para a consolidação da aprendizagem de crianças e adolescentes, as atividades físicas, a criação de um ambiente acolhedor e respeitador em sala de aula, o ensino por meio de desafios (o cérebro busca soluções quando é desafiado dentro de um limiar de dificuldade superável), a observação do tempo-limite de concentração considerando-se as diferentes faixas etárias, o uso de material midiático e interativo que apele não apenas à leitura e à escrita, ou seja, não apenas material verbal (palavras), mas também ao uso de outros materiais de apoio relacionados à música e a outras formas de arte. Essas e outras evidências, aplicadas à sala de aula, podem tornar mais eficaz a aprendizagem. No entanto, para que esse conhecimento esteja disponível ao professor, é necessário que a academia o disponibilize, saindo de seus muros e traduzindo de forma acessível para a comunidade escolar os conhecimentos gerados em pesquisas aplicáveis direta ou indiretamente ao ensino.
Muito ainda há por fazer, apesar de a leitura e a escrita estarem no centro das discussões entre pais, pesquisadores e professores há várias décadas. No entanto, percebe-se uma crescente conscientização das instituições brasileiras sobre investir na educação e no professor como peças cruciais para o desenvolvimento da nação, inclusive com iniciativas do terceiro setor, como jamais se viu em nossa história. Por isso, acreditamos numa reversão muito próxima do atual cenário de desempenho das nossas crianças e jovens em leitura e em escrita, a partir da participação de pais, educadores, governo e da sociedade.
* Lilian Cristine Hübner é doutora em Letras, professora adjunta da Escola de Humanidades – Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora do CNPq
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