É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 05/12/2018
João Jonas Veiga Sobral, professor de Língua Portuguesa e orientador educacional, reflete sobre conversas paralelas em sua última coluna para a Educação
Na fila do supermercado, presencio uma conversa paralela instigante. Dois amigos de idades próximas fazendo conjecturas sobre as eleições presidenciais e sobre os votos dados pelos eleitores em diversas regiões do país. Interessou-me menos as predileções políticas do que o diálogo deles. Eram dois senhores, um calvo, de têmporas brancas, e outro de cabelos respeitavelmente cheios e alvos. O calvo disse: “Você viu como o país está dividido? O Sul e o Sudeste votaram de um jeito, o Nordeste de outro”. Sem hesitar, o de cabelo branco, no alto de sua experiência alvejante, vaticinou: “É que no Nordeste há uma minoria rica e uma maioria dependente do Bolsa Família. Isso explica tudo”. O amigo balançou a calvície em concordância categórica. Ambos, por um ato divino, olharam para mim, esperando minha concordância também. Eu, de cabelos grisalhos, preferi ficar em cima do muro, em silêncio.
Não vou, depois de minhas elucubrações curiosas, na fila de um prosaico supermercado, discutir as opções políticas dos companheiros de espera e de compras, mas tratar da relação paralela estabelecida no também curioso diálogo deles. Percebi que não houve, na conversa, estragos na morfossintaxe. O paralelismo gramatical elaborado não era de todo mal. A construção não feria de forma substanciosa o que se propõe como harmonia dos termos em um período “uma minoria rica (substantivo + adjetivo) e uma minoria dependente (substantivo + adjetivo)”. É certo que, no segundo período, houve o acréscimo da expressão “do Bolsa Família”, composta por uma preposição (de) e um substantivo (família), diferentemente do primeiro, que se bastou no adjetivo “rico” – que poderia receber, sem prejuízo à ideia aventada pelo grave senhor de cabelos brancos, o acréscimo de uma expressão de morfossintaxe similar, como “rico de informação” ou algo equivalente. Seriam dois complementos nominais que tornariam os períodos paralelos, harmônicos e equivalentes sintaticamente. “minoria rica de informação” e “maioria dependente do Bolsa Família”.
Mas, enquanto esperava pela minha vez de ser atendido pela simpática moça do caixa, na minha cabeça de cabelos com vários tons de cinza, saltava ainda um incômodo com a conversa paralela e com o paralelismo semântico estabelecido. Por que será que o experiente senhor e o não menos experiente colega calvo concordaram com a relação paralela “minoria rica x maioria dependente do Bolsa Família”? Por que não optaram simplesmente por “minoria rica x maioria pobre” ou “minoria rica de informação e maioria pobre de informação” ou algo assim? Será que realmente é possível estabelecer a relação paralela, nos termos em que foi construída e acordada pelos simpáticos senhores analistas políticos de ocasião? Ou podemos perceber na conversa um viés que torna a relação desigual e viciada, uma vez que sugere que dependentes da ajuda governamental votaram por conta de um suposto assistencialismo?
Foram divagações que me balançaram no trapézio das ideias enquanto esperava a vez de ser chamado. Passado pelo sorriso prestativo da moça do caixa, lembrei-me de Memórias póstumas de Brás Cubas e do paralelismo maroto do defunto-autor que condena Marcela, sua primeira aventura amorosa, da seguinte forma: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. O raro e astuto leitor desse texto já deve ter percebido a maledicência e a ironia do narrador em estabelecer uma relação paralela entre o tempo (quinze meses) e o dinheiro (onze contos de réis). Ironia dura e acusativa, não é verdade?
Chegando ao estacionamento, deitei as compras no banco traseiro e as divagações literárias e paralelísticas do lado de fora do carro. Busquei, em vão, refúgio nas coisas do dia e nas notícias do rádio que me assaltaram com outra construção também estranha: “Candidatos de direita cogitam novas alianças e isolar o candidato de esquerda”. Mais uma vez, para lá da polarização e do jogo de interesses políticos à direita e à esquerda, incomodou-me a relação paralela, agora com problemas na morfossintaxe: “cogitam novas alianças“ e “cogitam isolar”. Sem que me arvore em ser conselheiro político, pensei que a frase ficaria melhor se formulada assim: “Candidatos de direita cogitam novas alianças e isolamento do candidato de esquerda“ ou “candidatos de direita cogitam constituir novas alianças e isolar o candidato de esquerda”. Na primeira opção, elaboram-se os períodos com substantivos (‘alianças e isolamento’); na segunda, com verbos (constituir e isolar). Se não ficam harmônicas e justas as relações políticas, ficam paralelas a coordenadas.
Instalado confortavelmente no carro, peguei rua paralela rumo à minha casa.
*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional.