COLUNISTAS

Colunista

João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 04/11/2018

Eu odeio brócolis

Coluna de João Jonas Veiga Sobral, professor de Língua Portuguesa e orientador educacional, fala sobre uso hiperbólico de palavras ou de expressões que potencializam os discursos

Caros leitores, adeptos e amantes de toda e qualquer dieta possível, o título deste texto não promove uma acusação aos brócolis nem uma defesa implícita da carne. Ele se atém apenas ao uso hiperbólico do verbo. Sim, ao uso do verbo, esse mesmo que se corporificou e habita entre nós há muitos e muitos anos.

Vejam só o exagero da relação estabelecida com o simpático vegetal “eu odeio brócolis”. Não é para tanto, não é verdade? Não sei se é possível interagir com um vegetal nesse extremo de sentimento e de inapetência, como também não sei se é possível o outro extremo – “eu amo brócolis”.

O título, talvez, não anuncie a que veio. Não se pretende discutir o tipo de dieta que se deve seguir ou não. A ideia aqui é de outra natureza. A proposta é refletir sobre o uso hiperbólico de palavras ou de expressões que, por motivações e intenções diversas, apresentam a força discursiva que se vale do exagero para afetar o outro de algum modo.

Mesmo um glutão tem à sua disposição, no idioma, palavras e expressões que talvez expliquem com mais clareza a relação que é possível estabelecer com a aludida variante da couve-flor do título. Tomemos algumas como exemplo: “eu gosto de brócolis’, “eu prefiro brócolis a outro vegetal”, “agrada-me comer brócolis nas refeições”, “apetece-me muito brócolis nas saladas e refogados” e por aí vai. Convenhamos, nutrir ódio ou amor pelos brócolis é ir muito longe na relação que é possível estabelecer com eles.

Mas atire a primeira pedra ou tomate quem nunca disse “estou morrendo de fome” ou “hoje tiro a barriga da miséria”. São exageros que visam acentuar o tamanho da fome que normalmente é menor do que a anunciada. Na primeira enunciação, a demora em comer não levaria o faminto enunciador à morte; na segunda, a barriga poderia estar temporariamente vazia e não necessariamente na miséria constante.

Os exageros e hipérboles inundam nosso dia a dia e tornam fartas as ideias e as intenções. Expressões como “ninguém veio à aula” são intencionalmente deturpadas, tornam-se sinônimos de “a maioria faltou” ou “vieram poucos alunos à aula”. O “ninguém” astutamente elimina as parcas presenças, dando-lhes a invisibilidade no discurso para que se escamoteie alguma intenção enunciativa. “Ninguém” e “todo mundo” tornam-se facilmente hipérboles que transformam qualquer percen­tual parcial em absoluto. Setenta por cento se transformam em cem por cento; na enunciação ou na leitura hiperbólica, tornam-se “ninguém” ou “todo mundo”, de acordo com o efeito que se deseja produzir no interlocutor.

Determinados locutores esportivos, por exemplo, costumam em jogos modorrentos ludibriar hiperbolicamente o fato, a imagem e o telespectador. Chute arremessado contra a meta adversária que passa perto das traves, mas longe o suficiente para não causar nem um perigo de gol, é esgoelado com um retumbante “para foooora” ou “passa raspando o gol” como se a bola houvesse “arrancado tintas da trave”.

Há personalidades esportivas e políticas que são chamadas pelos seus admiradores como “mito”. Para cada frase proferida por elas ou feito alcançado, seus fãs colam nelas o neologismo “mitou” e colocam-nas no Olimpo da humanidade. Um exagero, não é verdade? Na contramão dos fãs, há quem repudie o suposto mito com palavras ou expressões também hiperbólicas — como se a guerra entre fãs e opositores valesse o bordão “quem com hipérbole é elogiado com hipérbole será depreciado ”.

Chico Viana, professor de Língua Portuguesa e especialista no tema, define hipérbole e o seu contrário da seguinte forma: “Quem produz uma hipérbole o faz abalado por forte impressão emocional. Exagera para comover e suscitar empatia: ‘estou morto de fome’, ‘ele tem uma vontade de ferro’ (hipérbole metafórica), ‘daria a minha vida por você’. O contrário da hipérbole é a hipossemia, que consiste num abrandamento do sentido. Ocorre hipossemia, por exemplo, quando o escritor fala do seu ‘livrinho’, a mãe diz que vai dar ‘umas palmadas’ no filho ou o comerciante afirma que vende determinado produto em ‘suaves prestações’.”

As hipérboles e as hipossemias são figuras usadas largamente pelos falantes da língua como recursos retóricos intencionais e, por vezes, ardilosos. Quanto mais polarizada a situação mais elas aparecem nas enunciações e nas leituras apressadas.

*João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Leia também:

Em casa e na escola


Leia mais

algoritmo freepik

Algoritmo, o personagem do ano

+ Mais Informações
Captura de tela 2024-11-22 164725

Em MG, universidade e escola pública atuam em rede pela aprendizagem

+ Mais Informações
Captura de tela 2024-11-19 161252

Papa Francisco e o pássaro Dodô

+ Mais Informações
WhatsApp Image 2024-11-14 at 14.12.27

Entendendo a ansiedade durante avaliações educacionais

+ Mais Informações

Mapa do Site