Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Mais um mestre que se vai sem que dele tenha me despedido; sem que pudesse lhe dizer adeus em face de sua jornada final ao encontro do nada. Diante de seu desaparecimento, dou-me conta de que jamais lhe narrei o quanto sua obra-prima – Política e Educação Popular – foi decisiva para minha conversão ao campo da educação. Quando dela me aproximei, na década de 1980, ainda era aluno da graduação em filosofia. Escolhera o curso menos por qualquer fascínio que em mim exercera essa área do saber do que pela ilusão de que lá encontraria um engajamento político que almejava tanto quanto temia. Mas o enclausuramento nos textos que marcavam aquelas aulas e a ausência de um debate acerca da vida pública criavam em mim um incômodo que, à época, sequer era capaz de objetivar em um discurso.
Foi a leitura das obras de Freire e o estudo que Celso Beisiegel a elas dedicou que me convenceram ser a educação – e não a filosofia nem as ciências sociais – a arma à qual deveríamos recorrer a fim de banir a tirania, eliminar a miséria, superar a desigualdade. (Na época era assim: tudo no singular!) Por contingências da vida, jamais fui seu aluno, mas nunca cessei de com ele aprender. Sua voz calma e seu tom professoral, os gestos largos de seus braços e seu sorriso generoso me mostravam, aos poucos, que, na vida acadêmica, a militância pela educação popular não pode prescindir do rigor e da pesquisa; que a autoridade que brota do vínculo institucional dispensa ameaças e coerção. Ao lado de seu compadre – José Mário Azanha –, Celso me mostrou que a vida acadêmica só tem sentido quando é um modo de vida que inclui, mas não se limita à produção de conhecimentos e à publicação de obras. E o fez menos por seus discursos do que por seus atos.
E se nunca lhe contei tudo isso não foi por timidez, mas porque sabia qual seria sua reação. Celso pensava como um sociólogo e, assim, enxergava a si e a seu compadre menos como figuras singulares no panorama educacional brasileiro do que como homens que encarnaram as lutas de seu tempo. Sorria com algum orgulho, mas com muita ironia – e não sem um grau de ceticismo – cada vez que insinuava minha admiração por sua obra e por suas lutas. Mas, agora que seu sorriso se fechou para sempre, tenho algo a lhe dizer, caro mestre.
Sim, os tempos nos condicionam, mas cada um a eles responde de forma singular. Poucos foram leais a José Mário à época de sua prisão arbitrária. E você o foi. Foi também um dos poucos a me acolher no triste episódio de minha chegada ao departamento de filosofia da educação. E mesmo depois de ter sido diretor e pró-reitor, aceitou voltar a ser chefe porque o departamento precisava de alguém como você. E às vésperas de sua aposentadoria ainda se dispôs a frequentar reuniões intermináveis em que discutíamos os princípios de uma reforma no curso de pedagogia. Sempre com paciência, elegância e sensatez. Você era bem mais do que o produto de seu tempo.
Esse tempo que hoje de nós se despede carregando consigo um pedaço do mundo. E deixando em alguns de nós uma estranha solidão: a orfandade de um tempo.
Autor
José Sérgio Fonseca de Carvalho