Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 19/09/2017
José Pacheco escreve sobre colisões entre os especialistas de fora da escola e os professores
A partilha de conhecimento entre professores decorria em bom ritmo, mas foi interrompida pela intempestiva chegada de uma “especialista em currículo”. A “especialista” disse ter sido encarregada de apresentar uma proposta de protocolo de avaliação de projetos considerados inovadores. Sem delongas, ordenou a uma subordinada que desse início à sessão de power point e passou a conduzir os trabalhos, lendo slides, numa sequência monótona.
A exposição da especialista estava repleta de equívocos. Ao meu lado, um professor suspirava de enfado, pois já deparara com várias besteiras com chancela de cientificidade, que ninguém ousara comentar. Não se conteve, quando a dita “especialista em currículo” referiu como critério de avaliação do projeto o “índice de reprovação”.
Respeitosa e pertinentemente, questionou:
A senhora admite que projetos inovadores naturalizem o insucesso? Que se deva reprovar? Na nossa escola, acabamos com segmentações. Por isso, não se reprova.
Sem disfarçar a irritação, a “especialista” interrompeu-o:
Senhor professor, eu fiz doutoramento em currículo! Quem é o senhor para me questionar? As outras escolas não são como a vossa e não podemos exigir mais dos professores. Eles não sabem trabalhar de outra maneira. E o senhor não pode impor as suas teorias aos outros!
Não agradou ao professor que alguém tratasse outros professores com condescendência. E respondeu que não se tratava de teorias, mas de práticas transformadoras, desenvolvidas em escolas onde arcaísmos como a reprovação deram lugar a uma avaliação formativa, contínua, sistemática.
Em vão… A “especialista” respondeu com um esgar de desdém na face. Ignorou a interpelação e até mesmo a presença do professor. E a apresentação prosseguiu até o momento em que a especialista prescreveu que fosse feita observação de aulas. Após escutar o enésimo absurdo, ironicamente, o professor perguntou:
Aula? Em que século estamos, minha senhora?
Autoritária, a senhora respondeu:
Não queira parecer original! Terá de ser, mais ou menos, assim. E o senhor professor terá de fazer, mais ou menos, como estou a dizer-lhe que faça! Ouviu? E agradeço que não volte a interromper-me!
Observador atento, eu fui mais fundo na compreensão do drama daquela especialista cativa de um modelo de escola que apenas admite uma prática pautada no “mais ou menos” e que considera os professores incapazes de compreender e ainda menos de fazer diferente, de inovar.
Muitos anos decorridos sobre esse lamentável episódio, entre a sofisticação do discurso e a pobreza das práticas, os gestores “mais ou menos”, os formadores “mais ou menos”, os técnicos superiores e especialistas “mais ou menos” vão parindo medidas de política educativa “mais ou menos”. E os ministérios, os institutos, as fundações e outras agências de financiamento vão apoiando projetos “mais ou menos”, perpetuando a reprodução de seres humanos “mais ou menos”, a quem recusam o direito à educação.