NOTÍCIA
Docentes debatem pontos polêmicos como flexibilização do currículo e notório saber
Publicado em 24/11/2016
Grande parte dos educadores brasileiros está desconfortável com a implementação por Medida Provisória — tanto aqueles que são contrários quanto os favoráveis ao conteúdo. “Estávamos avançando nas discussões e essa reforma passa por cima de tudo que vinha sendo construído coletivamente”, afirma Francisca Pinheiro, professora de filosofia e sociologia.
Francisca leciona há quase 20 anos na rede estadual de Teresina e disse não encontrar nenhum ponto positivo na reforma, que “deveria ser descartada por completo”. Ao contrário da educadora, o também professor Caio de Oliveira vê com bons olhos a proposta de mudança, mas não deixa de criticar a implantação por MP.
“A reforma é um exemplo da falta de discussão com a opinião pública. Se o governo tivesse feito isso com um pouco mais de calma, com caminhos mais concretos, talvez víssemos menos rejeição”, afirma o docente de português da rede particular.
A apreensão demonstrada pelos educadores pode até mesmo dificultar a implementação da reforma. “Tecnicamente é pouco viável uma medida dar certo quando a comunidade que ela atinge não está envolvida”, comentou Antônio Batista, coordenador de Desenvolvimento de Pesquisas do CENPEC, durante evento sobre o tema.
Com a aprovação da reforma, os professores não serão mais os únicos habilitados a conduzir uma sala de aula. Educadores com graduação em física, por exemplo, poderão dividir espaço com profissionais formados em outras áreas de exatas, ou até mesmo professores de outras disciplinas, como matemática.
Segundo a MP, esses profissionais estariam habilitados a lecionar por conta de seu notório saber, ou seja, seu conhecimento na área abordada, ainda que não esteja vinculado a uma licenciatura naquela disciplina específica.
Muitas escolas no Brasil já vivem essa realidade. Quase 40% dos professores do país não ministram aulas nas suas respectivas áreas de formação. Para o educador de Cosme Ferreira, essa mudança representa uma institucionalização de um problema que já existe.
“O notório saber já vale na prática, e vai passar a valer na teoria. Eu temo que diminua o interesse pela formação nessa áreas, causando uma precarização do ensino”, afirma o docente do Instituto Federal de Alagoas.
Apesar de concordar que a medida pode desvalorizar a licenciatura, Fernando Domingues, diretor de inovação do colégio particular Eniac, diz que a mudança tem pontos positivos.
“Se eu trago um engenheiro para dar aula de matemática, a aula é mais aplicada aos alunos. Ensinar matemática em um contexto de engenharia é melhor que uma matemática 100% teórica ou abstrata”, afirma Domingues.
No Brasil, a evasão escolar chega a 17,4% na faixa dos 15 aos 17 anos segundo últimos dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE). A proposta do governo é dar mais autonomia aos estudantes, tornando o ensino mais atrativo e vinculado à realidade dos alunos.
Ao chegar ao ensino médio, será possível optar pelas seguintes ênfases: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas — como no Enem — e formação técnica. “A mudança é moderna porque permite escolher os conteúdos com os quais se tem mais afinidade. Assim, o aluno verá mais sentido no que está aprendendo”, aponta o professor Caio Oliveira.
No entanto, tal poder da escolha não necessariamente seria um ponto positivo. Carla*, professora da rede pública paulistana, acredita que a divisão por áreas é precipitada e não favorece o estudante. “O aluno não é treinado para ter autonomia. Quando ele chega ao ensino médio, mal sabe escolher a profissão dele”, aponta.
A separação por ênfases também deixa em aberto o futuro de disciplinas como arte e educação física, que serão opcionais no ensino médio, e filosofia e sociologia, que aguardam definição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“Só português e matemática como obrigatórias, isso prepara o cidadão pela metade. É uma fragmentação do ensino, não uma interdisciplinaridade como deveria ser. Vira uma reforma empresarial, focada no mercado de trabalho e não no aluno”, afirma José Valério, professor da rede estadual paulista. Além dessas duas disciplinas, o texto da MP também prevê que o ensino de língua inglesa seja obrigatório.
Outro ponto criticado pelos docentes é o possível aumento do descompasso entre a educação recebida nos colégios particulares e públicos. “Você acha mesmo que os colégios mais ricos vão mudar o esquema de aula deles? Meu aluno vai concorrer com esse cara, e aí? Só vai elitizar o acesso à universidade”, reclama Carla*.
Para o diretor Fernando Domingues, esse argumento é parte de uma desinformação sobre a medida. “Já vi estudantes e professores reclamando que o currículo vai ser cortado, que vão aprender menos que aluno de escola particular, mas o currículo já está inchado, não pode continuar assim”, explica.
Para Caio Oliveira, docente da mesma instituição privada, a discussão que está sendo travada em torno da medida é mais política que pedagógica, e não está focando nos pontos necessários.
“Os professores não estão preparados para lidar com esse modelo de ênfases que queremos para formação dos alunos. Um exemplo disso é que o Enem já é aplicado em setores, mas ainda formamos educadores por disciplinas”, aponta.
Um consenso entre as opiniões dos docentes é a apreensão com a viabilidade da medida. Oliveira, ainda que atue em escola particular, indica a necessidade de repensar se a rede pública tem a estrutura necessária para receber as diversas ênfases propostas.
Francisca, professora da rede estadual piauiense, concorda. “Dificilmente haveria oferta de todas as áreas que, segundo a falácia, ‘estariam disponíveis para o aluno escolher’. Para estudar na escola mais próxima de sua casa, o estudante teria de aceitar o que estivesse disponível”, acrescenta.