NOTÍCIA
Colunista fala sobre a questão do ensino médio e a recusa ao diálogo
Publicado em 17/11/2016
Em sua obra A Política, Aristóteles descreve o que lhe parece ser a singularidade que distingue o humano dos outros animais: a palavra, a capacidade humana de produzir um discurso, de expor suas razões. O ser humano é, pois, dotado de logos, termo grego que abarca todas essas diferentes acepções. Mas a centralidade da palavra que manifesta uma opinião ou um juízo é bastante clara em sua distinção.
O filósofo grego reconhece que outros animais podem ser dotados da capacidade de emitir sons e ruídos que veiculam necessidades, como um cachorro que late por ter medo ou grita ao ser agredido. Os animais podem, pois, ser dotados de voz (phoné), mas não de palavra (logos): a natureza dos animais só vai até aí. Possuem o sentimento da dor e do prazer e podem indicá-lo entre si. Mas a palavra está aí para manifestar o justo e o injusto. É isso que é próprio do homem em comparação com os outros animais: o homem é o único que possui o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto. E, por essa razão, o homem é um ser político.
Assim, o caráter político do homem deriva de sua capacidade não apenas de indicar a dor – quando grita ao ser agredido, por exemplo – mas de se manifestar em relação à injustiça pelo fato de ter sido agredido. É, pois, pela palavra e pelo discurso que os humanos manifestam suas opiniões, desejos e expectativas e criam a política como uma forma peculiar de existência, mediada pela palavra e pelo discurso. Assim concebida, a política não é a mera gestão das necessidades econômicas dos homens, mas uma forma digna de lidar com os conflitos pelo enfrentamento dos discursos.
Se evoco esse clássico do pensamento político, não é por diletantismo, mas para lembrar o óbvio: uma decisão só é política na medida em que se sujeita ao exame dos diferentes discursos que se enfrentam na arena pública. Tratar uma reforma do ensino médio por meio de medida provisória, como faz o governo federal, é negar a política em favor de um autoritarismo travestido de tecnocracia. Não se trata aqui de apontar erros ou acertos em seu conteúdo, mas de denunciar sua recusa em considerar os discursos daqueles diretamente envolvidos na questão: os professores, pais e alunos desse importante segmento da educação básica.
Ora, o currículo e a organização escolar não são questões meramente técnicas, mas problemas políticos de primeira grandeza. Eles dizem respeito, por exemplo, àquilo que queremos salvar da ruína do tempo: as práticas e saberes – como a poesia, a filosofia, o voleibol – cuja durabilidade no mundo nos parece justa ou boa, mesmo que não tenham nenhuma utilidade imediata. Ensinamos não só aquilo de que os alunos necessitam para sobreviver, mas o que consideramos fundamental para que suas vidas possam florescer e ser dignas. Daí a importância política da discussão acerca de uma reforma no ensino médio.
Ao recusar o diálogo – o reconhecimento da palavra como forma de manifestação das diferentes visões sobre o justo e o injusto – o governo Temer nos trata como meros animais que podem produzir sons e ruídos de insatisfação ou dor, mas ignora o fato de que somos seres dotados de palavra e capazes de produzir discursos sobre nossas expectativas e juízos. Ou seja, ignora o fato de que somos seres políticos, cujos discursos podem desafiar o autoritarismo de suas leis e a violência de seus cassetetes.