Ilustração retratando o sistema planetário Gliese 581, feita em abril de 2009 | © Eso/L. Calçada
Você sabe onde encontrar Sancho, Quixote, Dulcineia e Rocinante? Sim, as páginas do romance Dom Quixote são a opção mais óbvia. Mas desde o final de 2015 o quarteto também reside ao redor da estrela de Mu Arae, localizada na constelação de Ara, distante cerca de 50 anos-luz da Terra. Tecnicamente são chamados de planetas extrassolares, ou exoplanetas, pertencentes a outros sistemas planetários.
A ideia de que há planetas ao redor de outras estrelas nasceu praticamente com a moderna astronomia. Coube ao frade italiano Giordano Bruno (1548-1600), ainda no século 16, a primazia de imaginar que muitas das então chamadas estrelas fixas que se veem no céu seriam na verdade “outros sóis”, os quais possuiriam “suas próprias terras ao seu redor”. Acreditava que essas terras “em nada seriam inferiores ao nosso mundo”, e que também abrigariam “seus próprios habitantes e animais”.
Bruno morreu em 1600, mas suas ideias não passaram batido. O inglês Isaac Newton (1643-1727), um dos pais fundadores da física, defendeu uma concepção parecida, poucas décadas após a morte do italiano. Mas foi só na década de 80 do século 20 que a existência de outros sistemas planetários passou da teoria à realidade, com a realização das primeiras detecções. Mesmo assim, estas só foram plenamente confirmadas já no século 21.
Hoje, a pesquisa com planetas extrassolares é uma das áreas mais movimentadas da astronomia. Em duas décadas e meia, cerca de 3,5 mil deles foram detectados em 2.600 sistemas planetários. Nos casos em que há mais de um planeta, usa-se a classificação de sistema multiplanetário, dos quais se conhecem atualmente 590. É bem possível que esses números aumentem até o final do ano, devido ao ritmo intenso de novos resultados. Quando a Nasa anunciou a última grande batelada de detecções, em 2014, foram apresentados nada menos que 715 exoplanetas, distribuídos por 305 sistemas planetários.
Como o termo “detecção” sugere, a imensa maioria desses astros não foi localizada por observação direta. Esta é dificultada por várias razões: muitos planetas costumam ter um tamanho bem menor do que as estrelas às quais estão ligados pela força gravitacional. Também não são capazes de emitir luz ou outra forma de radiação, o que exclui o uso de instrumentos de radioastronomia. Por isso, as descobertas de exoplanetas só se tornaram possíveis com o desenvolvimento de mais de uma dúzia de métodos indiretos de observacão.
Um desses métodos captura os efeitos do trânsito do planeta, isto é, sua passagem entre a estrela e a Terra. Quando está nessa posição, ele bloqueia parte da luz emitida pela estrela, e esta variacão pode ser medida pelos astrônomos. O método mais usado, chamado de velocidade radial, mira nos efeitos gravitacionais causados pelos planetas. Assim como são mantidos em suas órbitas devido ao “puxão” gravitacional de uma estrela, eles também a “puxam” (uma vez que a atração gravitacional é mútua). Esse “puxão” faz com que a posição da estrela experimente uma pequena variação, que acontece regularmente, em relação com a órbita do planeta. Essa variacão se reflete na luz emitida pela estrela, que chega até a Terra. Monitorando essas minúsculas oscilações, é possível inferir a presença de um companheiro influenciando a estrela.
Super terras e mini-Netunos
Ao mesmo tempo que começaram as detecções, iniciou-se também a classificação dos exoplanetas. Ela foi inspirada nos mesmos critérios que usamos no sistema solar. Existem aqui duas variedades: os planetas rochosos, que incluem os quatro mais próximos do Sol, e os gigantes gasosos, que são os quatro mais distantes. Os rochosos, como a Terra, tendem a ter um tamanho menor, por isso, os exoplanetas de dimensões mais modestas são classificados como “terrestriais”, na suposição de que terão uma estrutura semelhante à nossa. Mas a Terra também serve para outras comparações de tamanho. Aqueles que chegam até o limite de 10 massas terrestres são chamados de super-Terras. É uma forma de mostrar que são grandes, mas não tão grandes como um planeta gasoso.
São os planetas gasosos de nosso sistema solar que fornecem os parâmetros para os gigantes lá de fora. O maior dos nossos é Júpiter, cuja massa equivale a 317 Terras. O segundo maior é Netuno. De acordo com seu tamanho, e em comparação com os nossos gasosos, os exoplanetas podem ser chamados de “mini-Netunos”, “super-Jupíteres” etc.
Inicialmente, as primeiras detecções revelaram apenas planetas com massas iguais ou maiores do que Júpiter, o que supreendeu os astrônomos. Hoje, eles correspondem a um terço do total conhecido. Meia dúzia são gigantes com massas equivalentes a 30 ou mais vezes a de Júpiter. Apenas uma quinzena possui massa igual ou inferior à da Terra.
Paisagem estranha
Além do tamanho, os astrônomos foram surpreendidos por outras características dos exoplanetas. Alguns, com massa bem maior do que Júpiter, estavam tão próximos de suas estrelas que eram capazes de completar uma órbita num período de tempo equivalente a poucos dias terrestres – ou, mesmo, poucas horas. Nesses casos, a proximidade da estrela faz com que a temperatura na atmosfera deles seja altíssima, alcançando 10 mil graus Celsius nos casos mais dramáticos. Tamanha proximidade só é posivel porque, na verdade, eles estão caindo em direção a elas, seguindo uma trajetória em espiral. E até a presença desses planetas supermassivos é mais exceção do que regra: segundo nossos dados, eles podem ser encontrados em apenas 10% dos sistemas planetários.
Primeira imagem de um exoplaneta, registrada em 2005, a uma distância de
230 anos-luz
da Terra | © Eso
Essa paisagem causou um alvoroço na comunidade científica. Pois em nada lembra o que vemos nas nossas redondezas. O sistema solar está dividido em duas partes muito bem delimitadas. Mais perto do Sol estão os quatro planetas rochosos. Eles levam entre 88 e 687 dias para completar uma órbita, e estão contidos no interior de um anel de fragmentos de rocha e poeira cósmica, conhecido como cinturão de asteroides. Para além do cinturão ficam Júpiter e os demais gigantes gasosos. Esses gigantes concentram a maior parte da massa do sistema e estão abrigados em órbitas quase circulares e bastante estáveis, que os mantêm bem longe de nossa estrela. Só para dar uma ideia, a distância média entre Júpiter e o Sol é de 780 milhões de km, e ele leva quase 12 anos para dar uma volta ao redor da estrela. Netuno, o mais distante, demora 165 anos.
Outro impacto causado pela pesquisa diz respeito às teorias sobre formação do próprio sistema solar. As ideias mais tradicionais sugeriam que cada planeta havia se formado mais ou menos onde está hoje, e os demais elementos característicos – as órbitas estáveis e quase circulares dos planetas gigantes, sua distância do Sol, o fato de que há tão pouca massa nas regiões mais próximas de nossa estrela – eram considerados “naturais”. A constatação de que muito pouca coisa semelhante já foi revelada na pesquisa em exoplanetas deixou os estudiosos do sistema solar numa saia-justa. Surgiu toda uma nova linha de investigações.
Hoje, devido a um árduo trabalho de simulações computacionais que buscaram reconstituir a história do sistema solar, temos uma história diferente para contar. E, nela, Júpiter desempenha um papel primordial.
Acredita-se que nosso gigante gasoso não esteve sempre na órbita onde se encontra agora. Devia estar uns 300 milhões de km mais perto do Sol. E a região interna do sistema solar abrigava, além dos quatro planetas que podemos ver, algumas super-Terras, que estavam se formando por ali. Devido à interação gravitacional com Saturno, Júpiter deve ter saído de sua órbita original e se deslocado em direção à região central. Essa aproximação jogou as super-Terras que ali existiam em direção ao Sol, destroçando-as. Em outros momentos, Júpiter exerceu outras influências decisivas para dar ao sistema solar a configuração que tem hoje. Mas o importante é ressaltar que sem o estudo dos planetas extrassolares, provavelmente não teríamos nos questionado sobre nossa própria história.
Astrobiologia
Outra área que tomou uma chacoalhada com a pesquisa em planetas extrassolares é a que busca por formas de vida alienígenas. A disciplina científica que tem como tarefa determinar se estamos ou não sós no Universo chama-se astrobiologia. Os astrobiólogos conseguiram mapear aquelas que parecem ser as condições essenciais para o surgimento da vida. E elas têm muito que ver com a composicão dos planetas, bem como com o tipo de sistema planetário em que habitam.
Entre essas condições estão a existência de planetas terrestriais que possuam carbono, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio; a disponibilidade de água em estado líquido; e uma distância ótima de uma estrela, de tal forma a impedir extremos de frio e de calor. Hoje, de todos os planetas que temos no sistema solar, apenas o nosso reúne essas condições – embora seja possível que Marte também as tenha reunido no passado.
Atualmente, os astrobiólogos acompanham atentos os anúncios de detecção de novos planetas, em busca de um que reúna essas mesmas qualidades. Essa fixação ganhou o nome popular de busca por uma nova Terra. Até agora, o campeão atende pelo nome de Kepler 452 b, cuja descoberta foi anunciada em 2015. Ele está a 1.400 anos-luz de distância. Orbita uma estrela semelhante ao Sol, da qual está a uma distância suficiente para não experimentar muito calor ou frio, o que lhe permitiria ter água líquida. Tem uma massa cinco vezes maior do que a nossa. Devido ao seu tamanho, suspeita-se que seja um planeta rochoso. Mas isso não está confirmado. Se for rochoso, é possível que sua superfície esteja repleta de vulcões ativos, despejando gases na atmosfera.
Para quem busca algo como um irmão gêmeo da Terra que tenha como pré-requisito as condições para a existência de vida, talvez Kepler 452 b pareça ainda insuficiente. O que a pesquisa com planetas extrassolares deixou bem claro até agora é que um planeta como a Terra parece ser algo muito, muito raro. Talvez a vida também o seja.