NOTÍCIA

Edição 229

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Redacao

Publicado em 09/05/2016

Diálogo inspirador com Rocío Carrion

Pesquisadora espanhola defende os benefícios do aprendizado dialógico

© Gustavo Morita
Rocío Garcia Carrion: a chave da aprendizagem está na interação, na conversa

Apontado como parte importante do aperfeiçoamento das pedagogias construtivistas e cooperativas, o dialogismo associado diretamente à educação tem tido seus efeitos dentro e fora da sala de aula estudados por diversos pesquisadores ao redor do mundo. O destaque é o rol de pesquisas sobre o tema realizadas nos últimos 30 anos pelo Centro Especial de Investigação em Teorias e Práticas de Superação da Desigualdade (CREA), da Universidade de Barcelona, na Espanha.
A partir de apontamentos feitos pela entidade, em 2014, a União Europeia reconheceu que a aprendizagem com base na interação dos sujeitos tem sido a forma mais efetiva de ensinar jovens estudantes de países do bloco. No Brasil, Peru, México e Colômbia, uma parceria entre o CREA e o Instituto Natura difunde a proposta interacionista em escolas públicas e privadas. Atualmente, 172 instituições de 50 municípios brasileiros e 37 escolas de cidades localizadas nas demais nações latinas têm implantado o projeto intitulado Comunidade de Aprendizagem, também desenvolvido na Espanha.
O tema é central nas investigações da pesquisadora e educadora espanhola Rocío Garcia Carrion, estudiosa das áreas de aprendizagem dialógica, interações e desenvolvimento intelectual no CREA. Ela já atuou como pesquisadora na Universidade de Cambridge e na Wolfson College, ambas no Reino Unido. Em passagem pelo Brasil, Rocio falou a Educação sobre os êxitos do aprendizado dialógico para o desenvolvimento social das comunidades localizadas no entorno das escolas, e para a melhoria da cognição e das habilidades socioemocionais de jovens que vivem em comunidades com os mais diferentes contextos ao redor do mundo.
Quais os princípios por trás do aprendizado dialógico?
Nessa base científica se utilizam as teorias educativas de psicologia e sociologia de forma interdisciplinar, que têm demonstrado um maior benefício para a educação. O aprendizado dialógico, teorizado por Ramón Flecha, articula-se com base em sete princípios: o diálogo igualitário, a inteligência cultural, a transformação, a criação de sentido, a dimensão instrumental, a solidariedade e a igualdade de diferenças. Esses princípios são a base das Comunidades
de Aprendizagem.
Como surgiu o projeto internacional de escolas organizadas em Comunidades de Aprendizagem?
Entre os anos de 2006 e 2011, nós [do CREA na Universidade de Barcelona] investigamos 28 escolas situadas em diferentes contextos da Espanha e de outros países da Europa. A ideia era ver se havia atuações de êxito que levavam aos melhores resultados de aprendizagem. Essa pesquisa acabou sendo a única da área de ciências sociais selecionada pela União Europeia como eficiente para demonstrar que determinadas atuações educativas de êxito melhoraram o ensino e o ambiente social onde foram desenvolvidas. Na realidade, o CREA começou essas investigações em 1991. Então, essa pesquisa já completou mais de 25 anos, sendo que a primeira escola de ensino fundamental criada como Comunidade de Aprendizagem na Espanha foi inaugurada em 1995. Antes disso, foi inaugurada uma instituição no mesmo modelo, mas voltada a alunos adultos. Essa escola chegou a ser visitada por Paulo Freire, e também foi citada em revistas científicas internacionais como “uma escola onde as pessoas se atreviam a sonhar”.
Por meio dos estudos, o que observaram ser atuações de êxito em termos de aprendizagem?
Em uma escola na região da Catalunha, na Espanha, só 17% das crianças conseguiam passar na prova de língua espanhola. Quando foram introduzidas atuações de êxito, como grupos interativos de alunos, rodas de conversas literárias e dialógicas nas aulas e a escola passou a promover a participação educativa da comunidade em seu espaço, enfim, ao se transformar em uma Comunidade de Aprendizagem, a instituição viu o percentual de crianças que passaram na avaliação de língua saltar de 17% para 85% em cinco anos. Trata-se de um incremento muito grande e positivo.
Boa parte das ideias sobre aprendizado dialógico se baseia nas teorias de Lev Vigotski. É possível dialogar com os escritos de Jean Piaget?
Vigotski focou certas limitações da teoria cognitiva de Piaget, e percebeu que o desenvolvimento cognitivo também ocorre quando dialogamos. Ou seja, a chave não está em um conflito entre assimilação e acomodação, mas sim na interação que, consequentemente, produz esse conflito. Vigotski também percebeu que não é necessária a simetria dos alunos; não importa que haja assimetria cognitiva se há diálogo igualitário. É uma questão de revisar quais teorias estão avançando mais e nos dando mais dados sobre para onde caminha a aprendizagem na sociedade atual, que é uma sociedade mais dinâmica. O aprendizado dialógico foi elaborado pensando na sociedade do futuro, na sociedade da informação.
Quais as diferenças entre o aprendizado dialógico e as pedagogias construtivista e colaborativa?
A concepção construtivista da aprendizagem tem sido muito criticada pela comunidade científica por investigadores de todo o mundo. Um artigo da revista Harvard Education Review publicado em 2005 questiona muitos dos princípios do construtivismo, como, por exemplo, a ênfase de que a chave do aprendizado está em um conhecimento prévio. Muitos autores têm questionado isso, alegando que qualquer pessoa pode aprender um conhecimento novo sem ter conhecimento prévio. Então, o conhecimento prévio não é a chave. Também ao contrário do que prevê o construtivismo, o contexto sociocultural não é chave para o conhecimento. Se uma pessoa é do Brasil, pode aprender e entender questões sobre a Espanha quando tudo é bem explicado. É possível uma criança entender a Odisseia de Ulisses a partir da experiência de seus pais imigrantes vindos de regiões de fora da Europa, e isso é significativo, tem um sentido.
A criação da teoria da aprendizagem cooperativa nos anos 1970 tem como seus idealizadores a dupla Johnson & Johnson. Essa teoria é interessante, porque coloca o foco na cooperação. Mas muitos investigadores perceberam que grupos cooperativos não garantem o diálogo igualitário, porque pode haver no grupo uma criança que monopolize a atividade, ou alunos que apenas copiem as conclusões dos outros. Além disso, pode ser que, em uma sala de aula dita cooperativa, o professor, a única pessoa adulta presente na aula, siga atuando de forma monológica, como se só ele tivesse o conhecimento ali. Se damos um passo a mais e colocamos ênfase no dialogismo, transformamos as interações dos alunos.
Mas como promover essa transformação ampla?
Nas escolas inseridas no projeto Comunidade de Aprendizagem, há atuação de adultos voluntários da comunidade nas aulas. Eles trazem para a escola novos conhecimentos, diálogos e reflexões. Dentro de grupos de alunos, esses voluntários não atuam como professores, mas como facilitadores que promovem um dinamismo nas conversas. Então, o foco da aprendizagem dialógica está na interação, não na cooperação. E havendo em sala mais figuras adultas que não só o professor, é possível ter quem assegure a igualdade da participação de todos os alunos nas conversas. Resumindo, o aprendizado dialógico garante maior êxito para educarmos os cidadãos do futuro para uma sociedade mais democrática e mais justa para todos.
A escolha por um desses tipos de linha não deve ser, então, uma questão de afinidade ideológica?
Conforme a ciência avança e vemos o impacto da aprendizagem construtivista, o impacto da aprendizagem cooperativa e o impacto da aprendizagem dialógica, vemos que o dialógico tem os melhores resultados porque possibilita um aprendizado mais profundo, motivador e transformador em função do papel central do diálogo. As escolas do Brasil podem eleger entre aprendizagem construtivista, cooperativa ou dialógica. Mostramos as evidências, os resultados de investigação sobre o aprendizado dialógico. Mas cada instituição escolhe o que quiser.
Qual o caminho para que o professor adote o dialogismo e “abra mão” de ser o centro da fala e do conhecimento em sala de aula?
São as próprias ações educativas de êxito que geram as transformações. O professor muda seus hábitos a partir de sua própria participação nas ações educativas de êxito. Uma professora de uma escola do projeto nos contou que quando um dos seus alunos disse que “adorou que um dos voluntários tinha ido à aula, porque havia aprendido muito com ele”, ela se sentiu muito mal. Foi para casa e disse que pensou ‘por que ele aprendeu com um voluntário, e não comigo?’. Uma semana depois, essa professora diz ter percebido que também havia aprendido muito com a sua mãe, por exemplo, que era analfabeta, e que, quando lavava roupa, falava coisas que ajudavam a futura docente a descrever melhor aquilo havia aprendido na escola. Esse mudança se produz graças à formação dialógica e científica dos professores. Ou seja, o projeto gera essa transformação, não é algo que chega pronto.
Logicamente, nossa responsabilidade como educadores e pesquisadores é formar os professores para trabalhar a partir das evidências. Os professores com os quais tivemos contato durante as pesquisas leram nossas indicações de textos originais de Vigotski, de [Jerome] Bruner, [Jürgen] Habermas, [Paulo] Freire. Enfim, tiveram acesso a várias fontes diretas, e não ao que alguém escreveu sobre Vigotski. Eles puderam entender o que diz Vigotski. Quando os professores têm acesso aos textos e podem debatê-los por meio do diálogo igualitário, trocando também experiências práticas, eles entendem o sentido da teoria e da investigação em seu próprio trabalho. Demos evidências e informações científicas não só nas mãos dos professores, mas também de membros das comunidades do entorno das escolas, assim as famílias trabalham em conjunto com a instituição. A formação também é para os adultos que atuam com as crianças, porque o êxito da aprendizagem depende da relação de todos esses.
É realmente possível o diálogo igualitário em países com realidades sociais e culturais nas quais as desigualdades são muito presentes?
Às vezes, pessoas que não são acostumadas a um diálogo igualitário, quando veem a interação que pode ser gerada na sala de aula e na comunidade, mudam. Há situações de desigualdade muito fortes na Espanha também. Em dois colégios em que trabalhamos, havia muitos estudantes migrantes árabes, vindos do Marrocos. As famílias espanholas não aceitavam os membros das famílias migrantes, porque eram pobres, muçulmanos, porque viam essas famílias como uma ameaça e um desafio. Um professor de inglês convidou a mãe de uma aluna árabe para ser voluntária em suas aulas. Essa mãe havia sido imigrante na Inglaterra e falava inglês fluentemente, mas não sabia escrever nem ler nessa língua. Essa mulher falava inglês melhor do que o próprio professor da escola. As mães espanholas perceberam, então, que, com a moça árabe atuando nas aulas, seus filhos aprendiam melhor a língua estrangeira e também tinham acesso a valores diferentes. A desigualdade se transforma quando se abrem possibilidades como essa que, inclusive, mudam o contexto exterior à escola. Em países onde há mais desigualdade, é possível trabalhar dessa mesma maneira. Muitas instituições de ensino de ponta, como Harvard, nos Estados Unidos, anseiam pela diversidade e o contraste social dos estudantes e docentes. Isso porque acreditam que a diversidade que cerca a instituição beneficia também aqueles de classes mais altas, que acabam por conhecer formas diferentes de viver que fazem parte da sociedade.
Como é aproximar essa proposta de pais que tiveram uma aprendizagem mais tradicional, “engessada”?
As evidências nos mostram que essas atuações de êxito são as que vão se comunicar melhor com todas as famílias, das mais tradicionais às mais vanguardistas, todas as que são mais atentas aos melhores resultados e à educação de máxima qualidade. Afinal, essas atuações de êxito asseguram que seus filhos aprendam mais, sejam mais motivados a aprender, sejam melhores pessoas e sejam necessariamente incluídos no processo de aprendizagem para que todos juntos sejam melhores. Quando oferecemos uma proposta de aprendizagem com base em evidências empíricas que mostram que não vamos fazer ‘experimentos’ com os alunos, que não vamos aprovar ainda não experimentado, que se há um voluntário em sala não é para que se mude a metodologia ou só inovar por inovar, mas sim para acelerar a aprendizagem e melhorar a convivência, nunca as famílias recusam. Elas veem que a melhora do aprendizado é evidente inclusive indo a outras escolas da região e observando as mudanças. Dentro de grupos interativos, o professor pode utilizar apostilas. Não importa. É possível que uma criança aprenda melhor por meio de projetos ou por meio de apostilas. O que faz a diferença? Que haja interação. Ou seja, o aprendizado dialógico vale para qualquer metodologia se a escola, as aulas e a comunidade se organizarem com base no dialogismo.


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