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Autor

Luciana Alvarez

Publicado em 01/12/2015

Na onda do letramento

Línguas portuguesa e estrangeira, artes e educação física compõem uma mesma área da Base. A pouca menção direta a questões gramaticais resulta em cobranças de não especialistas

© Gustavo Morita
Aluno da EMEF Morro Grande

A área de linguagens reúne quatro componentes curriculares, ou disciplinas: língua portuguesa, língua estrangeira, artes e educação física. Assim, une sob uma mesma perspectiva linguagens verbais e não verbais, como a musical, visual e corporal. Embora muito diferentes, o texto destaca que são todas formas de expressão e interação entre sujeitos. A Base também afirma que não há uma hierarquia entre as linguagens, o que é contestável, pois na prática há muito mais espaço para a língua portuguesa. Além disso, o domínio linguístico permite ou ao menos ajuda a compreensão de outras linguagens.  

O componente de língua portuguesa foi dividido em cinco eixos, cada um deles com objetivos e progressões de aprendizado ano a ano. São eles: apropriação do sistema de escrita alfabético/ortográfico e de tecnologias de escrita; oralidade; leitura; escrita; análise linguística, sendo que a análise é transversal aos demais eixos. Nos anos iniciais do fundamental, o eixo de apropriação do sistema alfabético é central, e seus objetivos são propostos em articulação com os demais.

Entre os acadêmicos que estudam metodologias de ensino de língua portuguesa, há um certo consenso há quase 30 anos de que o aprendizado deve ser orientado por seus usos sociais, na perspectiva cara à ideia de letramento: aprender a correspondência entre sons e formas deve se dar em situações reais e cotidianas dos alunos, e não por meio de uma memorização de regras dissociadas de contexto. Essas ideias já estavam expressas nos Parâmetros Curriculares da década de 1990.

A linha mestra do Plano Nacional para Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) foi aproveitada na redação dos objetivos dos anos iniciais em língua portuguesa, explicou Isabel Cristina Frade, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da UFMG e parte da equipe de especialistas responsáveis pela versão preliminar da base. “O trabalho com a língua portuguesa parte do texto e dos gêneros textuais em uso, numa perspectiva de letramento aplicada às práticas cotidianas, literárias, tecnológicas, cidadãs, científicas, visando também sua contribuição para todos os componentes curriculares”, defende ela.

As cinco “práticas” citadas por Isabel foram chamadas no texto da BNCC de “campos de atuação”, numa visão influenciada pela teoria das esferas de uso, do linguista russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). Para abordar a língua no campo da cidadania, por exemplo, foram incluídos nos objetivos a leitura e discussão de textos de leis, abaixo-assinados, argumentação em debate público e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Um dos grandes desafios foi discriminar ano a ano os objetivos de cada eixo, em cada um dos campos de atuação, para permitir que o conhecimento vá se aprofundando. “A habilidade de compreensão de textos da esfera literária, por exemplo, implica várias outras, e um professor pode ser o mediador dessa compreensão lendo e fazendo boas perguntas desde o início da alfabetização. Os alunos vão ganhando autonomia de leitura e podem desenvolver habilidades mais complexas”, explica Isabel.

Embora concorde com o ensino vinculado aos usos sociais, uma grande falha do texto é não contemplar as diversidades regionais, afirma Lívia Suassuna, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “A literatura de cordel não está no cânone, nos livros distribuídos às escolas, então dificilmente é estudada, mesmo em comunidades onde é forte. A chamada literatura marginal, que em muitos contextos é importante, fica fora da escola.” Ela ressalta ainda que o texto da Base não toca na questão dos povos indígenas, que têm o direito de serem alfabetizados em sua língua materna. “Continuamos a produzir os mesmos estereótipos, impor a regra da maioria para todos.”

Vale lembrar, no entanto, que a Base prevê que os conteúdos nela descritos sejam responsáveis por 60% do que deverá ser ensinado, ficando outros 40% para serem definidos regionalmente. A questão aí seria saber se todos os brasileiros deveriam ter acesso a línguas indígenas, ou apenas os próprios.

E a gramática?

Apesar de pesquisadores alegarem que há grande consenso no ensino de língua portuguesa, o texto de referência encontrou ao menos um crítico de peso: o ministro da Educação, Aloizio Mercadante. Ele assumiu a pasta em outubro e afirmou que é preciso reforçar o ensino da norma culta e da gramática. E, mesmo nas escolas, ainda há muitos professores que privilegiam a memorização de regras da língua, em vez de seus usos.

Professor da Universidade Esta­dual de Campinas (Unicamp) e autor do livro Por que (não) ensinar gramática na escola (Mercado das Letras), Sírio Possenti diz que a polêmica pode se originar pelas diferentes concepções do que é ensinar gramática. “Para começar: ninguém lê uma gramática na escola. Usam-se pedaços escolhidos, como se fossem manuais. Numa boa gramática, você vai ter 20 páginas sobre concordância verbal, mas num livro didático, não vai além de uma: apresenta a regra básica e as concordâncias especiais”, afirma.

Para ele, a gramática deve, sim, ser ensinada, mas na prática. “Você pode pegar um texto do aluno e ir editando junto, revisando – como se edita e revisa um livro. Ou usa um texto antigo, como a Carta de Caminha, e atualiza, escreve como se diria hoje. Exercícios de reescrita são uma forma boa de ensinar gramática”, avalia. Já encontrar a sílaba pré-tônica ou identificar um adjunto adnominal não faz ninguém escrever melhor, defende o linguista.

Para Possenti, o fundamental é o aluno ler e escrever bem. Ainda assim, entender a estrutura da língua materna pode ser benéfico. “Se estudar as zebras ou o Himalaia pode fazer parte da escola, por que não conhecer a estrutura da língua?”, questionou. Mas a visão tem de ser científica: “Tenho de analisar “os menino saiu” e “os meninos saíram” da mesma forma, sem preconceitos, assim como os botânicos estudam plantas com ou sem flores”.


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