Socióloga Ellen de Lima Souza busca em seu trabalho contrabalançar a percepção que tende a atribuir às crianças negras uma condição de subalternidade de vítima
Desde o século 19 crianças brancas e negras têm tratamentos diferentes na primeira infância |
Como professoras de educação infantil percebem a infância de crianças negras? Em que medida suas experiências de formação influem nessa percepção? Essas perguntas foram o ponto de partida da pesquisa de mestrado da socióloga
Ellen de Lima Souza, realizada junto ao Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Em seu estudo, Ellen constrói uma análise que busca aportar elementos para contrabalançar a percepção que tende a atribuir às crianças negras uma condição de subalternidade de vítima, a qual circula fortemente no campo social – inclusive entre educadores, fator de prejuízo para o desenvolvimento dessas mesmas crianças.
Segundo a pesquisadora, essa percepção é alimentada por um pensamento de matriz europeia, que foi o fundamento das políticas de assistência e de educação infantil no Brasil, marcadas pelo reforço das desigualdades entre crianças negras e brancas.
Na dissertação, a socióloga recorre a estudos anteriores para enfatizar que desde o século 19 as políticas de educação infantil no Brasil estabelecem distinções entre crianças negras e brancas: enquanto as primeiras eram atendidas em creches e asilos, os meninos de 3 a 6 anos frequentavam jardins da infância, concebidos, desde aquela época, como instituições educacionais.
Ao longo do tempo e, sobretudo no período recente, ocorreram avanços no campo da educação infantil, inclusive na incorporação das temáticas relacionadas às relações étnico-raciais, pontua Ellen. Apesar disso, diversas pesquisas (como os estudos de Eliane dos Santos Cavalleiro, professora da Universidade de Brasília) apontam para a persistência de uma desigualdade na maneira como crianças brancas e negras são tratadas e percebidas no ambiente escolar.
“Nossa percepção é atravessada pela perspectiva eurocêntrica e essa condição estabeleceu na educação relações muito cruéis e desumanizadoras, que atingem adultos e crianças”, defende Ellen. “Assim, quando uma criança negra adentra a sala de aula, a condição de ser negro tende a superar sua condição etária de ser criança.”
Percepções sobre crianças
Para investigar suas hipóteses, Ellen realizou uma pesquisa qualitativa com o objetivo de captar percepções de professoras de educação infantil sobre crianças negras. A coleta de dados foi realizada por meio de conversas aprofundadas com três professoras de uma instituição de educação infantil que atende servidores, professores e alunos da UFSCar.
Foram selecionadas docentes com pelo menos 15 anos de profissão e cujo trabalho evidencia um compromisso com a educação das relações étnico-raciais. Todas elas possuem, em seu currículo, mais de cem horas de formação nessa área e têm como marca de sua atuação profissional o combate ao racismo e a promoção da educação para as relações étnico-raciais, inclusive em artigos científicos e participações em eventos acadêmicos.
As conversas foram conduzidas entre 2010 e 2011 com o objetivo de fazer emergir “unidades de significado” expressas em percepções. Essas unidades de significado desvelam temas passíveis de serem agrupados em dimensões.
Desse modo, as conversas ocorreram em torno de três perguntas-chave: “Como você se formou professora de educação infantil?”, “Como você foi construindo sua ideia sobre a infância negra?” e “Como você recebe a infância negra na instituição de ensino em que atua?”.
Para analisar as percepções, a pesquisadora se baseou na fenomenologia do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Segundo a fenomenologia, os seres humanos são compostos por corpos físicos e consciências que ganham significado nas relações vivenciadas por eles. “Ao construirmos nossa consciência, vamos construindo nossas percepções sobre o mundo e sobre os outros”, explica Ellen na dissertação. Ou seja, as percepções não podem ser dissociadas das experiências de vida e das relações que uma pessoa estabelece com outras.
Inspirando-se na fenomenologia, Ellen buscou procedimentos para desenvolver uma análise compreensiva dos dados, bem como orientações para se aproximar das experiências vivenciadas pelas professoras que pudessem revelar suas percepções de infância relacionadas a crianças negras. O foco da análise recaiu sobre a forma como as professoras expressam o percurso que as tem levado a perceber, conhecer e compreender as condições nas quais se constrói a infância de crianças negras.
Assim, a partir das conversas, as percepções das professoras associadas às crianças negras foram traduzidas num conjunto de temas: formador, formando-se para/na educação infantil, vivências da própria infância, infância negra (negação e dúvida), criança negra presente, criança branca ausente, sentimentos racializados, marcos negros e marcas brancas.
A persistência dos estereótipos
A análise das percepções das professoras revelou que, apesar de elas terem aprendido nas formações que realizaram técnicas para educar para as relações étnico-raciais, tendem a perceber a infância de crianças negras de forma estereotipada.
Isso ocorre, segundo a socióloga Ellen, porque as percepções, perspectivas e expectativas de mundo das professoras investigadas são atravessadas por ideologias racistas, adultocêntricas e cristãs, entre outras, que percorrem a sociedade brasileira. Ao analisar os discursos das professoras, a pesquisadora encontrou elementos dessas ideologias em suas percepções sobre crianças negras e brancas na escola.
Segundo pesquisa, professores tendem a ver crianças negras como vítimas em potencial |
Ela também constatou que as professoras enxergam seus alunos a partir da perspectiva das crianças brancas em detrimento das negras, a despeito de suas trajetórias pautadas por muitas formações no campo das relações étnico-raciais. Por exemplo, as professoras tendem a se referir às crianças negras a partir da negação e da dúvida – apesar de adotarem uma prática pedagógica voltada à educação das relações étnico-raciais e de valorização da cultura africana e afro-brasileira.
“Elas falavam com muita propriedade de como as crianças negras não devem ser tratadas, sobre quem as crianças negras não são, sobre o que elas não têm e o que elas não fazem”, analisa Ellen na dissertação.
Além disso, a criança negra tende a ser vista pelas professoras como uma vítima em potencial e como alguém cuja baixa autoestima é inerente à sua condição. Exemplo disso foi um episódio relatado por uma professora de uma menina negra que se arrastava pelo chão durante algumas atividades, levando-a a pensar que era preciso trabalhar a autoestima da criança. No entanto, a menina se comportava dessa maneira por ser míope, não enxergar e buscar ver as coisas mais de perto.
“O problema da criança era de ordem física, e o diagnóstico de baixa autoestima foi dado pela professora com base nas marcas brancas de suas experiências de vida. Ou seja, pelo fato de a criança ser negra a primeira percepção da professora era de que ela sofresse de baixa autoestima”, analisa a autora na dissertação.
A formação como caminho
Para a pesquisadora, o problema central por trás desse tipo de percepção e prática pedagógica são os formatos oferecidos nas formações continuadas. “Elas se propõem de forma muito empobrecida a uma sensibilização das professoras. Em contrapartida, a pesquisa mostra que essas professoras já são sensibilizadas pelas próprias crianças em seu cotidiano.”
Nesse sentido, defende Ellen, as formações que se propuserem a colaborar com a construção de uma educação justa, equânime e igualitária, têm de considerar os professores como intelectuais que produzem conhecimento, valorizando e incorporando seus saberes e práticas, ao invés de tratá-los como meros aplicadores de conceitos.
“À medida que seus saberes e experiências são valorizados e respeitados como conhecimento, eles passam a assumir-se como produtores de culturas”, reitera a socióloga. “A partir daí, podem passar a reconhecer nas crianças negras aptidões, o que favorece a construção de parcerias entre eles, as próprias crianças e a comunidade, possibilitando que as crianças deixem de ser vistas como vítimas para serem consideradas produtoras de culturas.”