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Aprender a ouvir

A escola tem de aprender a escutar quem não escuta, para ensinar a todos a arte de ouvir

Publicado em 30/01/2015

por Redacao

 

Tenho uma grande fé nas crianças. Acho que delas tudo se pode esperar. Por isso é tão essencial educá-las. […] Um povo que sabe cantar está a um passo da felicidade; é preciso ensinar o mundo inteiro a cantar. (Villa-Lobos)

É preciso ensinar a cantar, a apreciar música, a tocar instrumentos musicais, e a ouvir os cânticos do mundo. Uma educação estética do ouvido. Corremos o risco de estar surdos sem saber.

Daí a necessidade de abrirmos os ouvidos para a realidade e para os outros. Distinguirmos os sons que a rotina abafa e os sons inusitados que temos receio de descobrir. Melodias subterrâneas existem, e dariam mais beleza ao cotidiano caso pudéssemos percebê-las.

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Certa vez, uma menina criada na floresta de concreto foi morar numa cidade pequena, repleta de jardins, cercada de bosques, flores, toda arborizada. Ao chegar da rua, ouviu em seu quarto um barulho insistente e assustador. Gritou: “Mãe, tem um vazamento de gás aqui! Corre!”. A mãe estranhou e foi ver (e ouvir) o que era. Era uma cigarra perto da janela, cantando a exuberância do verão, e não um vazamento ameaçador.

A cigarra contribui para os acordes da orquestra do mundo. Está em sintonia com outros artistas da fauna. As aves são cantadores consumados. Os peixes borbulham sua toada. Até mesmo os vegetais participam, com o contraponto do silêncio multicolorido. As pedras têm sua própria voz, por vezes avassaladora. E tudo o mais que existe possui também seu timbre e diapasão. O ouvido educado (ou reeducado) nos dará equilíbrio interior, em meio ao caos sonoro em que nos encontramos tantas vezes. O maestro Villa-Lobos estava certo em acreditar na educação estética como caminho humanizador.

O poeta que sabe ouvir

Em seu livro Lulu (Editora Edelbra, 2014), o poeta Fabrício Carpinejar faz um inventário de sons que sua personagem não consegue ouvir. Lulu tem apenas cinquenta por cento de audição num ouvido, e quarenta no outro. Lulu não escuta bem. E o que não escuta Lulu, essa menina de olhos enormes, ávidos de sonoridade?

Nesta busca minuciosa de sons, Carpinejar ouve de tudo:

Lulu não escuta os latidos. A algazarra do recreio. O despertador. Lulu não escuta o relógio. Lulu não escuta as aves tremendo de frio lá fora. As roupas do seu armário.

Detectando o que Lulu não escuta, o poeta nos faz prestar atenção ao vozerio das coisas. Temos de admirar, pela audição, o passar do tempo. As roupas no armário certamente produzem ruídos específicos, sussurrando sobre as previsões meteorológicas, sobre a chance de saírem para passear naquele dia.

Lulu não escuta o girar da chave. A maçaneta dobrando. As venezianas batendo. Lulu não escuta a fumaça do café. Lulu não escuta os passos. A campainha.

Toda casa tem seus barulhos e estalidos próprios. Morar numa casa é saborear essa musicalidade doméstica, e incluir algumas notas nessa pauta. Dentro de cada cômodo existem burburinhos, rumores. As paredes falam, as portas gritam, as panelas tagarelam.

Lulu não escuta as batidas na madeira. O apontador descarnando a cor. A lista de chamada. O apito da escola. A sirene do bombeiro.

A escola também tem de aprender a escutar quem não escuta, para ensinar a todos a arte de ouvir. A pedagogia que finge saber tudo e fala sozinha não ouve a própria voz e acaba excluindo a todos. No entanto, quem já está com os olhos atentos aos alunos não precisa chamá-los aos berros. A lista é dispensável quando todos se veem e se ouvem.

A inclusão do som

Neste livro de Carpinejar, que costuma contar em crônicas, palestras e entrevistas como superou suas dificuldades no tempo de estudante (foi hostilizado pelos colegas que o chamavam de Panqueca, Morcego, Placenta e outros “carinhosos” apelidos), os temas da inclusão e da superação reaparecem.

Uma superação pela via poética. Sem pieguices. Mas com verdadeiro amor. A mãe de Lulu aprendeu a ouvir as limitações da filha. É assim que Lulu aprendeu a escutar a mãe, mesmo não podendo escutar “o arrepio da lã” ou “o prato posto na mesa”. O carinho autêntico se faz ouvir sempre. E sempre ouve o discreto ressoar da vida. A mãe de Lulu aprendeu a não se sentir superior, a entender de que é feito o silêncio de quem não ouve.

O poeta quer “ser ouvido”, como todos os professores querem, e, aliás, têm pleno direito a esse querer. A expressão “ser ouvido”, contudo, aceita uma dupla interpretação. O sentido primeiro é o de ser ouvido pelos outros. Quem não gosta de falar e ser ouvido? Falamos, pressupondo que os outros valorizam nossa fala.

O segundo sentido, porém, é não menos fundamental. Temos de nos transformar em ouvidos generosos, temos de ser orelhas solidárias, temos de nos tornar radares afinados, antenas capazes de fisgar no ar as vozes dos outros.

Somente assim saberemos conversar com Lulu, na linguagem especial da compreensão.

 

Gabriel Perissé é professor e pesquisador da Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos -www.perisse.com.br

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