NOTÍCIA
Mais do que uma profissão, a docência é um modo de se colocar no mundo
A primeira vez que adentrei uma sala de aula na qualidade de professor não havia completado vinte anos de idade. Não era uma escola de Educação Básica, mas um instituto especializado em ensino de idiomas. Como havia completado meus estudos secundários no exterior e era fluente em inglês durante minha adolescência, o ensino de línguas se afigurava como um emprego interessante enquanto cursava a faculdade. A esse interesse adicionava-se uma circunstância fortuita: havia tido uma ótima professora de inglês durante minha adolescência. A alegria com que ela realizava seu trabalho parecia-me um indício de que esse seria um trabalho do qual poderia extrair algum prazer.
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Como na maioria das escolas de idiomas, havia um método que deveria ser seguido à risca. E ele era complexo: exigia que recorrêssemos a gravações e slides; que repetíssemos cada frase um número predeterminado de vezes; que não falássemos uma única palavra em português… Enfim, a lista de mandamentos e proibições era longa. Tinha de tudo, menos espontaneidade e alegria. Rapidamente deixei de lado a ortodoxia do método em favor de experiências que então me pareciam mais sensatas. E as aulas passaram a ter uma dinâmica mais interessante. Em meu primeiro 15 de outubro como professor fui recebido pela minha turma com um bolo e uma homenagem que ainda hoje recordo em detalhes. Saí da escola naquela tarde acreditando ter me encontrado profissionalmente: era bom ser professor!
Mas os vigilantes do método não tardaram a vir me inspecionar. Numa noite um “supervisor” avisou-me que viera assistir a minha aula. Sentou-se ao fundo da sala e saiu antes de seu término. Nada me disse, mas deixou sobre a mesa um bilhete lacônico: Sua aula é horrível!. Passei, então, a ser vigiado de perto. Sentia-me inseguro e, como precisava do emprego, resolvi me ajustar ao método. As aulas mudaram radicalmente. Atinha-me a cada detalhe do prescrito, como num rito semirreligioso de um praticante sem fé. Convencido de minha conversão, o supervisor passou a procurar outros hereges.
Mas o ofício de ser professor sempre guarda a possibilidade do imponderável. Uma das turmas, formada majoritariamente por adultos, havia se dado conta do que acontecera. No decorrer de uma das aulas uma senhora pediu a palavra e foi direto ao ponto: Ele já não volta mais, afirmou. Pode ficar tranquilo, menino. A gente gosta da sua aula. Senti-me, de novo, livre para preparar minhas aulas. Aulas que estavam longe da perfeição, mas eram uma resposta pessoal que um professor dirigia a um grupo específico de alunos. Pouco a pouco minha alegria voltava.
Ao final do ano, de fato, pedi demissão daquela escola. Mas me dei conta de que jamais abandonaria a profissão. Mais do que uma forma de ganhar a vida, a docência se transformou para mim em um modo de existência. Em um mundo regulamentado e padronizado, a docência me parecia um pequeno oásis no qual a irredutível singularidade de cada pessoa poderia se manifestar. E resguardar esse espaço é hoje, como já o era há trinta anos, o desafio daqueles que creem que, para além de uma profissão, ser professor é um modo de se colocar no mundo e se relacionar com as pessoas que o constroem e o renovam a cada dia.
*José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp e pesquisador convidado da Universidade Paris VII
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