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Longa marcha

O debate de flexibilização do combate à maconha, estimulado pelas políticas do Uruguai e de estados americanos como Colorado e Washington, chega ao Brasil no difícil contexto de um ano eleitoral

Publicado em 05/05/2014

por Redacao

Longa marcha

José Cruz/ ABr


Há tempos o assunto surge esporadicamente, mas quando o Uruguai anunciou que legalizaria não só o consumo, mas também o plantio e a venda da maconha, a Cannabis sativa entrou no centro das atenções. O assunto já vinha ocupando as páginas dos jornais por causa do uso terapêutico da erva, adotado por alguns estados americanos. No Brasil, o assunto tem começado a ser tratado pelo Poder Legislativo. A recente decisão da Justiça Federal de Brasília, que obrigou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a liberar o uso de um medicamento à base de canabidiol (CBD), derivado da maconha, no tratamento de uma criança de 5 anos com epilepsia, teve grande repercussão. A pergunta começa a fazer parte de uma discussão mais ampla e séria: por que a maconha é proibida?

Origem na lei seca
Na verdade, nem sempre o consumo da maconha foi proibido. Até o século 19, e em alguns casos mais específicos no início do século 20, a legislação brasileira não abordava a questão das drogas.

Nos Estados Unidos, a sua proibição está relacionada à Lei Seca, que tornou ilegal a venda, o consumo e o transporte de bebidas alcoólicas.

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“A proibição do álcool foi o estopim para o ‘boom’ da maconha. Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha começaram a proliferar”, afirma o historiador inglês Richard Davenport-Hines, especialista na história dos narcóticos, em seu livro The pursuit of oblivion (A busca do esquecimento, ainda não publicado no Brasil).

No começo do século passado, a erva era legalizada, mas seus usuários – notadamente os mexicanos, negros, árabes e chineses – discriminados. Remédios eram feitos a partir da Cannabis, desde xaropes para tosse a pílulas para insônia, e boa parte da produção de papel usava como matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A planta também era muito usada na indústria têxtil – o tecido de cânhamo era usado em velas de barco, redes de pesca, cordas e outros que exigissem material muito resistente.

Nesse cenário de proibição, seguido pela recessão econômica causada pela crise de 1929, a maconha, que já trazia o preconceito contra os mexicanos, foi sendo associada a crimes relacionados com o vizinho do sul. E começava a campanha contra a erva, comandada por Henry Anslinger.

O homem da proibição
Inicialmente sem expressão, Henry Anslinger era chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição. Sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas, mas ao perceber o desagrado da maioria branca com o hábito dos negros e mexicanos, Anslinger passou a combater também a maconha. A campanha contra a planta se expandiu pelo sul dos Estados Unidos.

Em 1930, Henry Anslinger foi promovido a chefe do Federal Bureau­ of Narcotic (FBN), órgão governamental criado para comandar o ópio e a cocaína, e passou a controlar a política de drogas nacional. Coincidentemente, Anslinger era casado com a sobrinha do dono da petrolífera Gulf Oil, o empresário Andrew Mellon, que por sua vez era investidor da poderosa Du Pont. Desde os anos 20, a empresa pesquisava o desenvolvimento à base de petróleo de diferentes produtos, como processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira, aditivos para combustíveis, fibras sintéticas como o náilon e plásticos. Todos, produtos que rivalizavam com o cânhamo.

Com a rejeição cada vez maior da sociedade branca americana às comunidades estrangeiras, principalmente mexicanos, a marijuana – nome adotado nos Estados Unidos cuja palavra original, em espanhol, é usada para relacionar diretamente a droga ao povo mexicano – começou a ser proibida em diversas regiões dos Estados Unidos. “A Du Pont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da indústria do cânhamo”, sustenta o escritor Jack Herer, em seu livro The emperor wears no clothes (O imperador está nu, sem tradução no Brasil).

“A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon”, afirmou à revista Superinteressante, em 2002, o jurista especialista em tráfico de entorpecentes Wálter Maierovitch, ex-secretário nacional antidrogas do governo Fernando Henrique Cardoso.

A campanha americana contra a maconha foi se solidificando e logo ganhou adeptos na Europa e no Brasil.

Legalização no mundo
Hoje, muitos países discutem a legalização do consumo da erva. A legislação aprovada no Uruguai estabelece que o governo federal controlará a produção e o comércio da maconha. Para comprar, o indivíduo deverá ter mais de 18 anos, ser residente no Uruguai e se cadastrar num banco de dados oficial. O projeto prevê a venda em farmácias, com uma quantidade máxima para cada pessoa por mês. De modo semelhante, também será permitido o cultivo pessoal de um determinado número de plantas.

No estado do Colorado, nos Estados Unidos, a maconha está à venda desde o dia 1º de janeiro de 2014. No primeiro dia de legalização, cerca de 30 lojas habilitadas abriram as portas; no total, em todo o estado, 136 lojas haviam adquirido a permissão de venda.

De acordo com a lei aprovada, o comércio da erva será semelhante ao do álcool – só poderá comprar quem tiver mais de 21 anos de idade, no limite máximo de 30 gramas por mês. Assim como o estado do Colorado, o estado de Washington igualmente aprovou a posse e o consumo da maconha em novembro de 2012, mas, como a lei ainda não foi regulamentada, a venda oficial está em compasso de espera.

A grande novidade no caso desses dois estados americanos foi a legalização para uso recreativo, considerando que nos Estados Unidos outros 19 estados – alguns há bastante tempo, como a Califórnia, desde 1996 – permitem o uso para fins medicinais.

O último estado a permitir o uso terapêutico foi Nova York. Na Califórnia, ela pode ser prescrita até para dor nas costas. Apesar disto, o uso medicinal em muitos lugares ainda não deslanchou.

“Há ausência de prescrição. Minha opinião é que o uso medicinal da maconha só será colocado em prática com a aprovação irrestrita. Ou seja, se qualquer um acima de 21 anos puder usar. Nenhum estado a colocaria entre suas indicações, por exemplo, para o tratamento de soluços ou da tensão pré-menstrual, como bem fazia a rainha Vitória, na Inglaterra, no século 19”, argumenta Lester Grinspoon, 86 anos, professor-assistente emérito do departamento de psiquiatria da Escola Médica de Harvard, e um dos mais conhecidos e respeitados defensores da legalização da erva nos Estados Unidos.

Grinspoon acredita que o potencial terapêutico da maconha deve avançar muito quando a medicina começar a testar as diversas moléculas da planta, chamadas de canabinoides. A mais famosa e estudada por enquanto é o tetrahidrocanabinol (THC), mas o professor de Harvard chama a atenção para a canabidiol (CBD), o princípio usado na prescrição para a menina com epilepsia.

“Quando a ciência começar a manipular frações moleculares e mexer com o CBD, certamente teremos mais surpresas quanto aos benefícios da Cannabis. Ela será a maravilha do nosso tempo, como foi a penicilina no passado”, disse Grinspoon, professor de Harvard, em recente entrevista para o jornal Folha de S.Paulo.

Efeitos colaterais
Os efeitos colaterais do consumo, especialmente entre jovens, entretanto, ainda são controversos e desconhecidos. Estudos indicam que os componentes ativos encontrados na maconha têm algumas ações terapêuticas úteis. Mas isso não indica que o fumo seja benéfico, afirma o psiquiatra Ricardo A. Amaral, professor colaborador do Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), ao portal UOL.

Além dos danos ao aparelho respiratório, a droga também pode causar dependência, ansiedade e depressão; afetar a memória e a capacidade de atenção; desencadear quadros esquizofrênicos e até agravar quadros psicóticos; e provocar alterações celulares e imunológicas que resultem no desenvolvimento de lesões cancerosas.

Ainda segundo o psiquiatra, os jovens são mais vulneráveis aos efeitos negativos da maconha, pois até o início da idade adulta o cérebro ainda está se desenvolvendo.

No Brasil, a liberação do uso do CBD para uma criança não foi a única decisão judicial recente a flexibilizar o tema no país. Em março, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto, da 37ª Vara Criminal do Rio, rejeitou uma denúncia do Ministério Público Estadual pedindo a prisão de um homem detido com nove gramas de maconha e 18 gramas de cocaína.

O magistrado usou uma série de referências jurídicas para afirmar que o uso de drogas jamais deve ser visto como crime, mas sim, na pior das hipóteses, como um problema de saúde.

Controvérsias jurídicas
Em outubro do ano passado, um juiz de Brasília já tinha absolvido um homem flagrado com 52 trouxinhas de maconha e acusado de tráfico, ao entender que a portaria do Ministério da Saúde que inclui a erva no rol de drogas proibidas é inconstitucional.

No Congresso Nacional, dois projetos de lei estão em tramitação e prometem esquentar o debate. Em fevereiro, o deputado federal Eurico Júnior (PV-RJ) propôs liberar a plantação de maconha em residências, além do cultivo para usos medicinal e recreativo. Em março, o deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) propôs projeto que prevê a regulamentação da produção e venda de maconha.

Mesmo com o descrédito de que novas leis sobre um tema tão polêmico sejam aprovadas num ano eleitoral, o assunto chegou ao Congresso Nacional. O senador Cristovam Buarque (PDT-DF) vai promover uma série de au­diências públicas para, até o fim do ano, produzir um relatório sobre a maconha que será entregue à Comissão de Direitos Humanos do Senado. No Supremo Tribunal Federal (STF), um recurso extraordinário em trâmite contra a condenação do presidiário Francisco Benedito da Silva à prestação de serviços comunitários após ser flagrado com maconha numa cadeia em Diadema (SP) pode, na prática, descriminalizar a maconha no país.

No recurso, a defensoria questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343 sob o argumento de que fere o direito à intimidade e à vida privada. Em 2011, o STF reconheceu a “repercussão geral” da questão, o que significa que casos semelhantes deverão seguir a decisão da Corte. Se o STF decretar a inconstitucionalidade do artigo que prevê punição a usuários, porte e consumo estarão, de fato, descriminalizados, a exemplo do que ocorreu na Argentina, onde, em 2009, a Suprema Corte decidiu que usar droga é questão de liberdade individual, desde que não cause danos a outros. Mais uma vez, a infuência de um ano eleitoral pode pesar no andamento do debate.

Descriminalização
Na Europa, para além da experiência de legalização da Holanda – sempre tida como uma referência – outros países adotam políticas de descriminalização da maconha, como Portugal, Espanha, França e Inglaterra. Em sentido oposto, em países islâmicos de regimes fechados, como Arábia Saudita e Bahrein, no persa Irã, assim como na Tailândia, o uso da erva pode levar à prisão perpétua ou à pena de morte.

No Brasil, mesmo engatinhando, o debate tem avançado nos últimos anos. Causou surpresa para muitos quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso aceitou ancorar o documentário Quebrando o tabu (Dir. Fernando Grostein Andrade), a favor da descriminalização da maconha. Manifestações a favor da droga, como a Marcha da Maconha, também têm ocupado grandes centros urbanos.

A questão no país é a chamada instabilidade jurídica. Desde 2006 a legislação prevê que a posse para consumo próprio não é mais passível de detenção. Mas não há clareza quanto à quantidade que define “consumo pessoal”. Com cada juiz decidindo individualmente, com a forte presença do tráfico na sociedade brasileira, com o consumo operando como uma realidade, difícil escapar ao debate proposto pelo Uruguai. Muitos, na verdade, estão esperando para ver como o país vizinho se sai.

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