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O mito da reprodução

Tudo se passa como se a escola não pudesse produzir mais nada em termos de uma nova configuração social

Os estudos de Bourdieu representaram, na década de 1970, o golpe de misericórdia que selou o destino de um dos mais caros mitos da escola republicana francesa. Parte considerável de seu respeito social tinha por origem a firme crença de que a escola era uma instituição justa; de que as desigualdades que se instalavam em seu seio eram legítimas porque decorrentes do mérito de cada indivíduo e não dos acasos do nascimento. Se no Antigo Regime um nobre nascia nobre, na ordem republicana a nobreza de cada um deveria depender de sua força de vontade, de sua disciplina e inteligência, em suma, de traços de caráter que se desvelariam em seu desempenho escolar. A escola pública deveria, pois, ser o instrumento de realização da utopia burguesa da igualdade de oportunidades.
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Ao mostrar que o sistema escolar transformava a herança cultural de uma classe em capital cultural que rendia a seus herdeiros privilégios no desempenho escolar, Bourdieu destruiu o que ainda restava desse mito. O discurso da igualdade de oportunidades escondia o fato de que a escola privilegiava os privilegiados; que a hierarquia social fundada no diploma escolar perpetuava as desigualdades de uma sociedade cindida em classes. Assim, argumenta Bourdieu, a escola não só reproduz as desigualdades, mas o faz ocultando seus critérios seletivos sob o discurso do mérito individual.

Desde a publicação de A reprodução, suas ideias ganharam notoriedade entre acadêmicos, professores e demais profissionais da educação. E embora sua obra – erudita e complexa – seja pouco lida no Brasil, seu nome é constantemente evocado para reforçar uma certeza que, paradoxalmente, se transformou num novo mito: o caráter inexoravelmente reprodutor da escola. Assim, à visão ingênua de seu papel redentor – que a concebia como capaz de superar todas as desigualdades fundadas nas origens sociais de seus alunos – se sobrepôs uma visão igualmente simplista que passa a concebê-la como um mero aparelho estatal de reprodução das relações sociais.

Tudo se passa como se, por não ter cumprido a promessa de criar uma ordem econômica supostamente justa, a escola nada mais pudesse representar em termos de emancipação ou, ao menos, de produção de uma nova configuração social. Como se seu destino fosse sempre o de reproduzir a ordem que herdou do passado. Mas, se assim o fosse, como explicar a correlação entre o aumento da escolarização das mulheres e a brutal queda na mortalidade infantil que ocorreu em diversas regiões do Brasil? Como explicar o destino das mulheres das zonas rurais que, graças a uma instrução básica, migraram para as grandes cidades e tomaram para si os destinos de suas vidas? Como explicar a presença cada vez mais notável de mulheres em carreiras de grande prestígio social? E o vigor das reivindicações sociais que levaram os jovens às ruas em junho de 2013, não teria ele relação alguma com a maciça expansão do ensino médio?

Talvez tenha chegado a hora de sair do conforto de nossas certezas e, tal como o fez Bourdieu, interrogar esse novo mito: o de que a escola só reproduz a sociedade e nada “produz” de novo.

*José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp e pesquisador convidado da Universidade Paris VII
jsfc@editorasegmento.com.br

Autor

José Sérgio Fonseca de Carvalho


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