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O berço do homem americano

Estudos arqueológicos realizados no Piauí derrubam a teoria de que os primeiros habitantes chegaram no continente 15 mil anos atrás

Publicado em 03/06/2013

por Redação revista Educação

O berço do homem americano

Quem vê Nivaldo Coelho de Oliveira hoje com as mãos sujas de argila trabalhando no galpão de uma cooperativa de ceramistas não imagina a sua contribuição para os estudos arqueológicos na Serra da Capivara (PI). Desde 1972 ele é o principal guia da arqueóloga Niède Guidon, a mulher que revelou ao mundo o maior conjunto de inscrições rupestres das Américas, transformando a Serra da Capivara em parque nacional e revolucionando as teorias acerca da colonização do continente. Em abril último, as suas trajetórias contaram com mais um capítulo: a publicação de um trabalho que demonstra a existência de vida humana na região há cerca de 22 mil anos, o que coloca em xeque a principal teoria da origem do homem americano, que gira em torno de 15 mil anos.

Criado na pungente seca da caatinga brasileira, Nivaldo acompanhou Niède na descoberta da origem dos mais significativos estudos científicos da atualidade. “Quando ela chegou aqui, isso era só um povoado. O pessoal indicou que eu sabia muito sobre os sítios arqueológicos. E eu sabia mesmo. Nossos avós já contavam que os desenhos foram feitos por uns caboclos brabos…”, relembra. Não fosse ele, talvez nunca a arqueóloga tivesse trilhado os emaranhados caminhos que a levaram às impressionantes pinturas rupestres existentes na Serra da Capivara. Os desenhos do homem primitivo seriam importantes pela quantidade e simbolismo, mas tornaram-se especiais ao instigar os arqueólogos a escavar o solo e identificar, no local conhecido como Boqueirão da Pedra Furada, a presença humana há milhares de anos.
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As pesquisas de Niède Guidon e outros tantos arqueólogos brasileiros e europeus – que há quase 40 anos estudam os vestígios do homem primitivo que habitou a região – causam alvoroço no meio científico há muito tempo. Em abril, foi a vez de uma parceria franco-brasileira de arqueólogos, liderada por Christelle Lahaye e Eric Boëda, com a participação de Niède, publicar no periódico Journal of Archaeological Science um estudo realizado entre 2008 e 2011, na Toca da Tira Peia, cujas evidências indicam a presença humana no local há 22 mil anos. O resultado da pesquisa bate de frente com a tese de Clovis First, a ­teoria mais aceita sobre a ocupação das Américas.

O caminho de Bering
Elaborada por arqueólogos americanos na década de 1950, a teoria de Clovis First propõe que a origem do homem que colonizou as Américas ocorreu há cerca de 15 mil anos, durante a Era do Gelo, através de um caminho no Estreito de Bering, na atual região do Alasca. Segundo tal tese, o homem americano teria vindo a pé do continente asiático, num período em que uma espécie de ponte natural ligava os dois continentes. A seguir, acredita-se que ele se espalhou pela América do Norte e Central, alcançando a América do Sul por volta de 11 mil anos atrás.

Entretanto, os estudos em vigor na Serra da Capivara, durante décadas liderados por Niède Guidon, e com a participação de inúmeros arqueólogos europeus (principalmente franceses), refutam a teoria de Clovis First. “As evidências trazidas pelos estudos de artefatos líticos [objetos feitos com pedra lascada ou polida] não deixam dúvidas da nossa descoberta”, declarou à imprensa a arqueóloga Christelle Lahaye.

Para sustentar sua convicção, Christelle baseou-se na técnica da termoluminescência, que mede o dano natural da radiação solar em cristais como quartzo e feldspato existente nos sedimentos onde foram encontrados os artefatos. Através desta técnica, os pesquisadores estimaram em até 22 mil anos a última exposição do solo à luz solar.

“Encontramos ferramentas feitas a partir de matérias-primas que não se encontram perto do abrigo. Isso nos leva a concluir que elas foram escolhidas, trazidas, trabalhadas e utilizadas pela ação humana”, declarou a pesquisadora Gisele Felice, da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Para os autores desse estudo, isto prova que o homem já vivia na região no mínimo 10 mil anos antes do estimado.

História em reconstrução
O estudo recentemente publicado pela equipe franco-brasileira é mais um dentre tantos outros já divulgados, e cujos resultados derrubam a teoria de que o homem americano chegou no continente por volta de Clovis First.

Em 1973, com financiamento francês, a primeira missão na Serra da Capivara teve início. A proposta era documentar os desenhos rupestres e mapear a área, tarefa que resultou no registro de 55 sítios. O local batizado de Toca do Boqueirão da Pedra Furada destacou-se dos demais e passou a ser o principal ponto de investigação. Nele foram catalogados 1.200 conjuntos de pinturas rupestres. Em 1978, com o objetivo de contextualizar os desenhos primitivos, escavações no solo do local começaram a ser feitas. Foi neste ano que iniciou a reviravolta na história da ocupação humana nas Américas.

Logo, vestígios de fogueira (através de amostras de carvão) encontrados nas primeiras escavações indicaram a presença do homem entre 6 e 8 mil anos. Dois anos depois já era grande o número de artefatos de pedra lascada e evidências de fogueiras estruturadas obtidas no Boqueirão da Pedra Furada. No começo dos anos 80, quanto mais fundo no solo os arqueólogos iam, mas antiga era a datação encontrada nos vestígios do local.

Sempre utilizando o método do Carbono 14, em 1983 os vestígios dataram 31.500 anos. Em 1984, a pesquisa alcançou a marca de 32.160 anos. Algum tempo depois, o resultado obtido foi de 58 mil anos – período limite para o uso do Carbono 14, pois abaixo dessa marca a radioatividade do material orgânico já não existe.

A técnica da termoluminescência passou a ser utilizada, e quando os arqueólogos alcançaram, em 1988, a base rochosa do Boqueirão da Pedra Furada, as amostras coletadas dataram cerca de 100 mil anos. Durante os dez anos de pesquisa, foram encontradas marcas de milhares de fogueiras e oito mil peças de pedra lascada.

Desde o final dos anos 80, a publicação dos resultados dos estudos na Serra da Capivara gera muitas contestações. Na visão dos críticos, há sempre uma dúvida sobre o método de análise utilizado e, principalmente, pela ausência de uma hipótese viável de uma nova rota migratória. Os questionamentos proferidos pela comunidade que ainda defende a teoria de Clovis First têm grande influência no universo acadêmico.

A tese via Atlântico
A falta de uma proposta consistente de rota migratória alternativa que trouxesse o homem ao continente americano é a principal crítica que paira sobre os estudos feitos na Serra da Capivara. Crítica que a arqueóloga brasileira Niède Guidon rebate. Além de todas as evidências já coletadas na região do Piauí, ela defende ser possível essa migração ter ocorrido via ocea­no Atlântico, e não pelo estreito de Bering.

Em sua tese, Niède sustenta que no período da glaciação, quando o nível do oceano era até 140 metros abaixo do atual, as plataformas continentais da África e da América do Sul eram bem maiores. Consequentemente, a distância entre os dois continentes era igualmente bem menor. Impulsionados por correntes marítimas que ainda hoje fluem da África em direção à costa brasileira, esse homem primitivo poderia ter vindo pelo mar.

É consenso entre os cientistas que o Homo sapiens tem cerca de 180 mil anos, sendo originário do continente africano. Também é consenso que sua expansão pela Terra está relacionada a diversos períodos de intensas secas que assolaram a África, obrigando-o a mover-se em outras direções.

Há cerca de 130 mil anos secas avassaladoras deram origem aos atuais desertos africanos e teria sido neste período que o homem primitivo rumou em direção à Europa, ao Oriente Médio, e depois seguindo à Ásia. É justamente durante esse movimento migratório, que coincide com os vestígios de fogueira de até 100 mil anos encontrados na Serra da Capivara, que Niède sustenta sua teoria.

Educação in loco
Alheias aos embates científicos, as pinturas rupestres revolucionaram para melhor a vida da comunidade da região. Em São Raimundo Nonato, cidade porta de entrada da Serra da Capivara, a economia local gira em torno do turismo trazido pela arte dos homens primitivos. Aventureiros, viajantes, curiosos e, principalmente, alunos de escolas de ensino fundamental, médio e de graduação do Piauí e de outros estados do Nordeste, movimentam diariamente as inúmeras trilhas do parque nacional.

É cena comum ver crianças, jovens e adultos estupefatos diante dos desenhos feitos com material extraído da própria rocha, como a hematita, que produz uma tinta de tom avermelhado usada nos desenhos mais antigos.

Quem visita a Serra da Capivara aprende com os próprios olhos como surgiu a policromia na fase final da pintura rupestre, há cerca de seis mil anos, quando o homem primitivo começou a misturar outros minerais, como gipsita, caulinita e goetita para obter tintas amarelas, brancas e azuis. E assim estão representados veados, jacarés e emas, a famosa cena do beijo, homens empurrando animais, fazendo acrobacias e casais em posição de sexo.

Atualmente, cerca de 20 mil pessoas conhecem anualmente o Parque Nacional da Serra da Capivara e seus 200 sítios abertos à visitação – embora existam 1.350 sítios catalogados.

Nivaldo Coelho de Oliveira, a figura de aspecto frágil, estatura baixa, corpo magro e rosto marcado por inúmeras rugas que escondem a força e a vitalidade desse homem de 80 anos de idade, que guiou pela mão a arqueóloga Niède Guidon e colaborou para colocar a região no mapa dos grandes mistérios da civilização, não titubeia em dizer que há mais a ser visto. “Ainda tem muito desenho pra ser descoberto”, diz, enquanto manipula argila e dá forma a um novo pote de cerâmica, sua principal ocupação atual.

Com todos os vestígios já encontrados e talvez ainda outros que virão, parece ser só uma questão de tempo para as pesquisas e estudos elaborados na Serra da Capivara rescreverem a história do homem que povoou as Américas. Ainda que o tempo, nesse caso, costume ser medido em milhares de anos. Seja como for, para os habitantes de São Raimundo Nonato e as diversas comunidades que hoje vivem da fama das pinturas rupestres do Piauí, o mundo já está dividido, como eles mesmos gostam de dizer, entre a.N e d.N – antes de Niède e depois de Niède.

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Redação revista Educação


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