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Entrevistas

Docência como profissão

Rachel Lotan, diretora de um dos principais cursos de formação docente dos EUA, propõe princípios para o que chama de "poderosa formação de professores"

Publicado em 29/01/2013

por Paulo de Camargo

Pofissão professor? Para a pesquisadora Rachel Lotan, esta é uma questão central para a educação contemporânea, como um verdadeiro to be or not to be. Comandando aquele que é considerado um dos principais cursos de formação de professores do mundo – ministrado pela Universidade Stanford, em Palo Alto, nos Estados Unidos -, Rachel acredita que, embora já atenda às características fundamentais de uma profissão, a docência ainda precisa avançar para deixar a condição de um ofício em desenvolvimento. Para ela, entre os desafios da profissionalização está a superação do debate ideológico sobre o accountability – ou seja, a prestação de contas dos resultados da atuação profissional – em benefício do foco total e absoluto na aprendizagem dos alunos.

Divulgação
Rachel Lotan: pós-graduação de Stanford une teoria e prática

São princípios como esse que orientam o Stanford Teacher Education Program (Step), um curso de excelência com caráter de demonstração – pois aceita apenas 90 alunos anualmente – que serve como inspiração para programas de formação de professores norte-americanos e de outros países.

O Step é um curso de pós-graduação, com duração de um ano, que aceita alunos graduados em outras áreas, como economia ou inglês, por exemplo. Entre os principais diferenciais do Step está o encontro entre teoria e prática: ao longo de todo o curso, os professores atuam como auxiliares em escolas da região. Diariamente, retroalimentam o curso trazendo para a sala de aula estudos de caso, à luz das teorias e do aconselhamento de professores mais experientes. Toda a supervisão da atuação dos alunos do STEP é rea­lizada pelos próprios professores de Stanford e das escolas parceiras, que se reúnem semanalmente com os alunos e também acompanham a atuação dos estudantes por meio de aulas filmadas.
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O programa de Stanford recebe a visita de especialistas de diversos países, entre eles do Brasil, como da Fundação Lemann, que convidou Rachel, em parceria com a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), para duas conferências no Brasil, uma delas na própria Feusp. Em seguida, Rachel concedeu a seguinte entrevista exclusiva à Educação.

A profissionalização da formação de professores é um dos principais temas da Educação hoje. Como diretora de uma instituição que é referência na formação de docentes, a senhora vive diariamente o desafio da profissionalização docente. O que significa considerar a docência como uma profissão?
Eu defino a docência como uma profissão porque, como as outras, apresenta uma base de conhecimentos capaz de descrever o que é preciso fazer para se obter um ensino efetivo, com padrões e critérios definidos de uma prática eficaz. E, talvez o mais importante: tem o melhor interesse do seu “público”, ou seja, o aluno, na mente e no coração. No entanto, ao contrário de outras profissões, o ensino não se autorregula em um grau significativo e não se mantém como um corpo profissional que presta contas por sua atuação. Isso acontece porque a docência não é vista como uma profissão pelo sistema e pelas instituições, e fica no meio-termo, como uma profissão em desenvolvimento. A prestação de contas, o accountability, tal como definida por políticos, ideólogos, grupos de interesse diferentes, é um tema problemático para a docência. Mas as profissões em si precisam ser capazes de se responsabilizar pela sua atuação.

A profissionalização  está  avançando?
Eu não sei se a profissionalização está avançando ou não. Em alguns países, sim; em outros, não. É uma tensão permanente, porque a educação tornou-se um campo de batalha ideológico. Não se trata de culpar o professor ou as organizações que protegem seus interesses. Mas, enquanto essas discussões ocorrem, vivemos em um mundo em que as condições para  obter um emprego se tornam mais difíceis, com uma exigência crescente de formação educacional.
 
Em suas conferências, a senhora reforça o fato de haver princípios universais das reformas bem-sucedidas, o que não elimina a necessidade de se respeitar contextos locais. Poderia elencar alguns princípios?
Não acredito em um programa particular que pode ser aplicável em todos os lugares. Nunca vi algo assim funcionar. Mas, nas minhas palestras, proponho princípios que norteiam a composição do que chamo de uma poderosa formação de professores. Eu os formulo em termos de proposições para que as possam testá-las. Segundo essas proposições, a qualidade dos resultados de um programa poderoso de formação de professor está relacionada com: 1) a ligação entre a formação pedagógica e a pesquisa e a prática no campo; 2) a qualidade da relação entre a universidade e as escolas básicas; 3) a ênfase na excelência e na equidade na universidade e nas escolas; 4) a percepção, pelos alunos, de coerência em todo o programa de formação, ou seja, o nível de coerência programática.

No Brasil, os cursos de formação de professores enfatizam os aspectos teóricos. Qual é o lugar da teoria e qual é o lugar da prática na formação de professores?
Muitos programas de educação de professores não conseguem fazer a preparação dos professores “práticos”, que têm pouca ou nenhuma preparação clínica. Ter muita teoria e quase nenhuma prática é uma queixa permanente de estudantes em programas de formação de professores em todo o mundo. E essas queixas são bem fundamentadas. Professores – como outros profissionais, ou seja, médicos, engenheiros, advogados – aprendem a praticar a partir da prática e na prática. Há muita sabedoria na experiência dos professores veteranos. Relações mais estreitas entre a universidade e os contextos de atuação, ou seja, as escolas, são essenciais. Da mesma forma, os candidatos a professor precisam investir tempo aprendendo com os docentes nas salas de aula, para testar novas ideias, praticar e obter feedback sobre a sua prática, conectando aquilo que leram e ouviram na universidade com as situações particulares que surgem na sala de aula. Em Stanford, os candidatos a professor passam 20 horas por semana em escolas durante todo o programa. Isto é essencial, é como uma residência para a aprendizagem.
 
Fala-se muito da diversidade e da inclusão, mas não há difusão de práticas de ensino de crianças em situação de vulnerabilidade – quando se sabe que o insucesso escolar está fortemente associado às condições de origem. Ensinar crianças de diferentes origens socioculturais implica pedagogias diferentes também?
Sim, completamente diferentes. Este é o tema da minha própria área de pesquisa acadêmica! Eu acho que este é um dos maiores desafios enfrentados pelo sistema. Pedagogias muito específicas são necessárias para construir um sistema que funciona para todas as crianças. Precisamos lembrar que diversidade não se refere apenas à diversidade etnicorracial, mas socioeconômica, também, e as diferenças persistem na mesma sala de aula, na mesma escola, na mesma comunidade. Trata-se de um desafio muito grande para os professores. Equidade e excelência não devem ser paradigmas mutuamente exclusivos: a qualidade tem de ser para todos. Uma sala é equitativa quando todos os alunos têm múltiplas oportunidades e várias maneiras de demonstrar sua competência intelectual, quando a distribuição das medidas de desempenho dos alunos está concentrada ao redor de uma média aceitável, quando todos os alunos têm acesso a um currículo apropriado para a série e intelectualmente desafiador.
 
Um aspecto que chama a atenção em Stanford é o coaching, ou seja, a possibilidade de orientação permanente do professor, durante o seu trabalho. Este processo é possível mesmo em grande escala, ou apenas em instituições altamente especializadas, como Stanford?
Esse acompanhamento próximo do candidato a professor e do professor iniciante é um desafio enorme para os sistemas muito grandes, como é o caso brasileiro. Eu ouvi argumentos semelhantes de educadores em outros grandes países. Mas os EUA são um país muito grande também, em que o suporte a professores iniciantes e aos alunos dos cursos de formação de professores se mostra como um dos mais importantes indicadores para a oferta de ensino de qualidade. Professores visitando outras salas de aula, mentores experientes fornecendo feedback a partir de visitas às salas, resolução de problemas da atividade docente a partir de abordagens práticas parecem ser o caminho para o sucesso.

O princípio vale para a formação de gestores?
Eu me concentro na preparação de professores e líderes de professores. Mas acho que a preparação de dirigentes escolares e administradores não é fundamentalmente um modelo diferente.

Stanford representa uma tendência nos cursos de formação de professores nos Estados Unidos, ou ainda representa uma exceção? Como avaliam a qualidade do próprio programa?
Há mais de 1.400 programas de formação de professores nos EUA. Muitos deles não são de qualidade e alguns são de alta qualidade. Em Stanford, somos um programa de demonstração – um pequeno programa que tem efetivamente operacionalizado, realizado, colocado em prática os princípios de uma poderosa formação de professores que eu descrevi na minha primeira resposta. Nós vemos o ensino como uma profissão tão importante que afeta a família, a sociedade. Temos foco no estudante, como forma de chegar à justiça social. Os indicadores dos resultados da qualidade do nosso programa incluem índices gerais de graduação e qualidade do formando, taxa de sucesso no desempenho global do professor em processos de certificação, a persistência na profissão e na área educacional, a qualidade da prática de ensino depois da graduação e o desempenho dos estudantes dos professores preparados pelo programa.

O que você achou da sua viagem ao Brasil? Sentiu um clima favorável para promover mudanças?
Eu gostei muito de conhecer as pessoas no Brasil. Acho que há um monte de pessoas comprometidas a fazer mudanças significativas e trazer melhoria para o sistema em benefício das crianças. E eu acho que temos de fazer isso, real­mente – caso contrário, nossas democracias estarão em perigo. A qualidade da educação pública é uma condição necessária para uma democracia saudável. Espero que possamos ser capazes de responder a este desafio.

Autor

Paulo de Camargo


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