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Em busca dos melhores

Pesquisas indicam que escolas de "boa reputação" conseguem, por meio de práticas veladas, selecionar quem entra e, principalmente, permanece entre seus alunos

Publicado em 08/10/2012

por Redacao

Tânia Rêgo/ABR
Ciep Glauber Rocha (RJ), que teve índices positivos no Ideb: escolas com composições mais heterogêneas tendem a ser melhores para todos

O antigo slogan de uma marca de biscoitos fazia sucesso ao perguntar se o produto vendia mais porque era fresquinho ou se era fresquinho porque vendia mais. Essa mesma lógica pode ser aplicada ao se analisar os resultados de índices educacionais. As melhores escolas são melhores porque têm bons alunos ou têm bons alunos porque são as melhores?

A divulgação de mais uma edição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) trouxe à tona novamente discussões sobre a qualidade do ensino no país.  Todos tentam responder quais são as práticas e modelos que fazem uma escola ter um bom resultado no indicador. Mas, por trás dos números, estão práticas escolares e condicionantes que o Ideb não consegue mostrar – como, por exemplo, quem é o público que frequenta aquela unidade e como ele foi formado.

> Leia depoimentos de funcionários de escolas públicas sobre o processo
de seleção nas unidades de ensino

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As melhores escolas públicas são também aquelas que atraem um número maior de alunos à procura de uma vaga. Pesquisas indicam que escolas de “boa reputação” conseguem, por meio de práticas veladas, selecionar aqueles que entram e, principalmente, quem vai permanecer na unidade. Os mecanismos são variados. Pode ser uma consulta ao histórico do aluno no momento de um pedido de vaga, a recusa para receber aqueles com defasagem ou mesmo a expulsão dos que são considerados “inadequados” ao ambiente daquele colégio.

A academia chama isso de quase mercado, sistema em que as escolas acabam selecionando quem vai ou não entrar em função da alta demanda e, em alguns casos, até disputam estudantes entre si.  No Brasil, essas práticas assumem características diferenciadas porque são veladas. É o “quase mercado oculto”, como define a literatura.

Modelos de competição
O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Márcio da Costa explica que países como Estados Unidos e Inglaterra tiveram políticas de estímulo de competição entre as escolas – nesses modelos, a quantidade de recursos dependerá da capacidade de recrutar mais alunos.  A intenção nesse formato é estimular a qualidade pela concorrência, a partir do controle das famílias.

“No Brasil não temos políticas desse tipo, que posteriormente vieram a ser muito criticadas porque aumentariam a desigualdade entre as escolas. Aqui o que temos é uma competição de alunos por escolas. As escolas têm hierarquias entre si e naquelas que são reconhecidamente melhores do que outras há estudantes que competem por vagas”, explica Costa.

O professor da UFRJ pesquisou o tema em 2009 em escolas da rede municipal e constatou algumas práticas de seleção de alunos – especialmente no início da segunda etapa do ensino fundamental, quando os estudantes são transferidos para outras escolas ao concluírem a etapa anterior. Nesse processo de remanejamento, escolas de prestígio costumam mandar seus alunos para outras de padrão semelhante e rejeitam aqueles que são provenientes de colégios considerados ruins.

O resultado é que as escolas conseguem manter um público mais homogeneizado e que responda às próprias expectativas daquele estabelecimento de ensino.  “Algumas escolas têm capacidade de selecionar os alunos que vão entrar e isso é inevitável, acontece em qualquer lugar do mundo. Quando essa política não sofre algum tipo de regulação, o que você tem é um aumento da desigualdade”, aponta Costa.

Mecanismos de matrícula
O pesquisador ressalta que algumas escolas têm o poder de filtrar não apenas quem vai entrar, mas também quem vai permanecer. As transferências de alunos ao longo do ano letivo são, muitas vezes, uma maneira de evitar as taxas de reprovação. Um aluno de mau desempenho pode ser transferido para outra escola considerada “mais fraca” sob o argumento de que lá irá acompanhar com mais facilidade o ritmo de aprendizagem. Para Costa, esse mecanismo é uma “reprovação branda”.

O Ideb é calculado justamente por meio do cruzamento das notas dos alunos na Prova Brasil e as taxas de aprovação de uma unidade “O Ideb não tem proteção contra isso, teria de pensar alguma forma de coibir”, diz.

De acordo com a secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro, o sistema de matrículas foi alterado em 2010, justamente porque foi constatado o risco de mecanismos de seleção dos alunos. “Desde então, as matrículas são realizadas somente pela internet, o que impede que o aluno seja recusado pela unidade escolar”, diz nota encaminhada pelo órgão, após ser procurado por Educação.

Efeitos indiretos
O professor da UFRJ ressalta que, apesar de os mecanismos de “filtro” do público de cada escola terem potencial para impactar os indicadores educacionais, elas não realizam essas práticas diretamente com esse fim. “É muito improvável que isso seja uma estratégia deliberada para de alguma forma ligar essa seleção ao Ideb. O esforço das escolas é na direção de fazer a melhor escola e uma das maneiras mais fáceis é ter os melhores alunos”, aponta.

Estudo conduzido pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) com escolas municipais e estaduais de São Paulo (SP) chegou à mesma conclusão. Ao tentar escolher quem serão seus alunos, as escolas não miram o resultado das avaliações de desempenho, mas a manutenção do que consideram um bom ambiente escolar. Indiretamente, essas práticas terão efeito na qualidade da aprendizagem.

De acordo com a pesquisadora Luciana Alves, uma das responsáveis pelo estudo, a seleção se dá basicamente em dois momentos: quando a família procura uma escola em busca de vaga ou quando o aluno é transferido para outra unidade. Na rede municipal paulistana, os futuros alunos precisam ser incluídos em um cadastro para solicitar a entrada na rede, o que pode ser feito em qualquer escola. Em geral, ele será direcionado a uma unidade próxima ao local onde mora, mas em caso de falta de vagas poderá ser remanejado para a escola onde foi cadastrado. Temendo receber alunos “indesejáveis”, algumas unidades mentem para a família dizendo que não é possível fazer o cadastro e indicando outra escola para o procedimento.

No caso de transferências, alguns critérios são levados em consideração na hora de aceitar ou não a matrícula, entre eles a idade: os que têm maior defasagem são geralmente vistos como alunos-problema, perfil que a escola prefere evitar. Também são feitas pesquisas para levantar o histórico escolar do aluno ou mesmo entrevistas com a família. A reputação da escola de origem também é levada em conta.

“Convidado” a sair
“A distorção idade-série é vista como indicativo de mau comportamento e indisciplina. Os entrevistados indicam uma relação entre melhor desempenho escolar e a disciplina. Embora não haja uma motivação direta de impacto das avaliações, quando você seleciona pelo comportamento você cria um clima mais favorável para que as atividades escolares aconteçam”, aponta a pesquisadora. O estudo foi feito pelo Cenpec em parceria com a Fundação Itaú Social, o Unicef e a Fapesp.

Uma outra prática de seleção detectada pelo estudo paulista – e talvez a mais grave do ponto de vista do direito à aprendizagem – é a expulsão dos alunos considerados ruins, seja de forma explícita ou velada. A escola “convida o aluno a sair” porque ele não “se adaptou”, recomendando que ele se dirija a outra unidade. Esse movimento, aponta Luciana, pode ser feito com ou sem a garantia de rematrícula.

Ano perdido
Em alguns casos, as escolas têm acordos não oficiais entre si para aceitar “alunos-problema” de outras unidades em uma espécie de troca de favores. Mas em outras situações, o colégio simplesmente recomenda que ele saia ou o expulsa. Nesses casos, pelos vários mecanismos já citados, o aluno terá dificuldade para ser aceito em outras unidades e pode chegar a perder o ano. “Eles têm o direito à matrícula negado sucessivas vezes por suspeita de mau comportamento”, aponta Luciana.

A pesquisadora do Cenpec destaca que apenas as famílias mais bem informadas chegam a procurar a secretaria de Educação quando percebem que aos seus filhos está sendo negados do direito à vaga. As famílias com menor condição social e educacional são, portanto, as principais vítimas desse quase mercado oculto.

Maria do Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do MEC, avalia que esses mecanismos fazem parte da “cultura de exclusão” presente nos sistemas de ensino brasileiros. “Essas escolas acham que a não aprendizagem ou as dificuldades dos processos não são responsabilidade ”profissional” da escola, mas culpa do aluno. Ao ”expulsar” o aluno através de ações disfarçadas ou maquiadas no regimento da escola, repete-se o ciclo de exclusão e naturalização do fracasso escolar”, aponta Pilar, que atualmente é diretora da Fundação SM no Brasil.

Esse ciclo cruel prejudica também as escolas consideradas mais inclusivas que fatalmente terão resultados piores nas avaliações do que aquelas que conseguem filtrar seu público. “As escolas mais acolhedoras serão aquelas que acabarão decantando os problemas que as outras não querem e isso pode ter efeito na avaliação”, diz Luciana. “Escolas com composições mais heterogêneas tendem a ser melhores para todos, mas óbvio que não é fácil fazer política pública para isso”, completa Costa, professor da UFRJ.

Pilar Lacerda avalia que o Ideb ainda é “jovem” e pode ser aperfeiçoado inclusive pensando em outras variáveis que meçam o índice “efeito-escola”. “Isso significa analisar o trabalho da escola que recebe alunos pobres, vindos de famílias não escolarizadas, que não tiveram acesso à educação infantil e mesmo assim garantem a aprendizagem da maioria dos seus alunos. O Ideb deve também identificar escolas que fazem seleção na entrada ou usam métodos disfarçados para que sua fragilidade, ao não conseguir ensinar a todos, seja identificada”, afirma.

Amostra escolhida a dedo
Outra fonte de “distorção” dos resultados das avaliações está na escolha da amostra de alunos que participam da Prova Brasil, um dos componentes utilizados para calcular a nota da escola. É a unidade de ensino quem determina quais estudantes farão o exame – há apenas a exigência de um mínimo de 50% das matrículas.

“O Ideb precisa, com urgência, tratar a questão dos ausentes. Eles são numerosos tanto no 5º ano quanto no 9º ano. Mas no 3º ano do ensino médio a situação é calamitosa. Em 2009, os últimos dados publicados, apenas 50% dos alunos previstos responderam ao teste. Não sabemos nem a direção, nem o tamanho do viés causado. Ou seja, a descrição que temos hoje da educação brasileira é obtida desconsiderando muitos alunos”, avalia o professor Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O especialista aponta que o censo escolar precisa ser mais considerado no cálculo do Ideb. “Hoje já sabemos, com boa aproximação, quais alunos estão nas escolas. Eu criaria um indicador que desse nota zero para os alunos ausentes, o que se refletiria na nota da escola, que, portanto se interessaria em manter a informação do censo”, diz.

Apesar das imperfeições do indicador, Soares defende que o Ideb foi um grande avanço porque trouxe para o público a discussão de que as escolas e sistemas educacionais devem ser avaliados – assim como o aprendizado de seus alunos. “Isso coloca o aluno, o cidadão, no centro do debate, o que constitui uma enorme mudança da situação anterior. É mais importante do que detalhes técnicos do indicador”, acredita.

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