NOTÍCIA

Ensino Médio

Apaixonados por…matemática

Instigados pelas competições olímpicas da disciplina, alunos vencedores influenciam a relação entre professores e colegas na escola

Publicado em 08/10/2012

por Fábio Fujita

Gustavo Morita
Matheus (primeiro à esq.) e alunos que foram para a Olimpíada Internacional de Matemática

Em 2008, o carioca Franco Matheus de Alencar Severo tinha 12 anos de idade e estudava num modesto colégio público quando resolveu arriscar-se na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep). Sem nenhuma preparação especial para a prova, saiu da competição ostentando a medalha de prata. A conquista abriu novos caminhos: candidatou-se, dois anos depois, a uma bolsa de estudos no concorrido Sistema Elite de Ensino, do Rio de Janeiro, e levou uma bolsa integral. Ao lado de outros “apaixonados por cálculo”, se integrou às equipes de treinamento para a matemática olímpica. Em julho último, como um dos representantes da seleção brasileira, Franco, hoje com 16 anos, foi medalhista de bronze na Olimpíada Internacional de Matemática (Imo), realizada na Argentina.

Longe de ser um caso isolado, Franco é mais um dos alunos que encontram, em competições olímpicas, estímulo para estudar para além do currículo exigido nas escolas. De quebra, influenciam a sala de aula. De acordo com relatório sobre os impactos da prova divulgado pela Obmep em julho de 2011, 59% dos professores reconheceram ter realizado alguma alteração real em suas práticas de ensino por causa da Olimpíada; 63% realizaram alguma atividade extracurricular (grupos de estudo, clube de matemática e afins) e 60% observaram que seus alunos passaram a estudar mais depois da participação olímpica. O estudo registra ainda a percepção quanto ao fortalecimento das relações entre a matemática e outras disciplinas, notadamente o português, com foco em interpretação de texto; e a melhoria nas relações professor-aluno e aluno-aluno.

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O envolvimento docente realmente é preponderante nessa relação de aficionados. Ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM), em 2011, Alessandro Pacanowski, 16 anos, lembra que, nas aulas de treinamento olímpico, os professores em sua maioria também são ex-participantes de Olimpíadas. “Eles passam a paixão deles para a gente”, exalta o estudante. Ainda segundo o relatório da Obmep, há indicativos de que o incentivo do professor ao aluno em relação à participação na Olimpíada surte mais efeito do que o incentivo dos próprios pais.

Matemática criativa
A paixão com que os estudantes olímpicos se entregam ao aprofundamento da disciplina tem a ver com a maneira original com que ela é abordada nas competições. “Acreditamos que o ensino da matemática é muitas vezes feito de forma burocrática em muitas escolas. Queremos mostrar que ela pode ser feita de forma criativa e estimular alunos e professores a se descobrirem e desenvolverem na disciplina por conta própria”, aponta Carlos Gustavo Moreira, coordenador geral da OBM. O medalhista Alessandro concorda. Ele cita como exemplo hipotético a aplicação de uma equação do segundo grau em sala de aula. “Basicamente, é só você jogar a fórmula de Bhaskara. É bem simples”, analisa. Já uma questão olímpica nunca é óbvia. “Você olha para o problema e não tem ideia do que fazer”, explica. E isso, para o aluno, não tem nada de aterrorizante: é desafiador.

Fernando Rocha, professor de matemática no ensino médio e pai de um medalhista, observa ainda que a complexidade das provas olímpicas contribui para aumentar substancialmente o nível intelectual do estudante, o que acaba se refletindo não apenas no óbvio e esperado bom desempenho em matemática, mas também em outras disciplinas. Segundo ele, o filho Daniel Santana Rocha, ouro na OBM, precisou faltar muito às aulas em função das viagens de preparação olímpica. Mesmo assim, suas notas apresentaram o dobro da média na maioria das matérias. Talvez até de forma inconsciente, o êxito numa disciplina específica pode levar o estudante a uma melhora geral de performance escolar, como forma de otimizar o próprio campo de interesse. “Por necessidade, o aluno consegue aprender as outras matérias mais rápido, para sobrar tempo para estudar o que, para ele, é mais importante”, teoriza Fernando. Alessandro concorda que as correlações, de fato, existem. Ele, que garante resolver questões de verdadeiro ou falso em história utilizando lógica matemática, tem o quinto melhor desempenho geral entre 300 alunos de sua série (1º ano do ensino médio) no colégio.

O céu é o limite
Também não se pode ignorar o fato de que a aplicação da Olimpíada acontece numa fase da vida, o início da adolescência, em que o aspecto da autoafirmação está bem aflorado no estudante. Assim, quando sua confiança aumenta ao se destacar numa área específica, ele sente que pode fazer a diferença no mundo, não ser apenas mais um. “Você tem vários approaches, várias ideias [para resolver uma questão olímpica]. Quando uma dá certo, você se sente bem. Esse é o tipo de sentimento que a Olimpíada te dá”, reitera Alessandro. E na medida em que ajuda a fortalecer a autoestima do aluno, a Olimpíada muitas vezes acaba por direcioná-lo de forma precoce a uma carreira, quando a maioria dos jovens ainda está insegura quanto ao que prestar no vestibular. “Se o aluno está preparado para uma competição de tão alto nível, vai estar preparado para fazer qualquer universidade boa na área de ciência e tecnologia”, endossa Luzinalva Amorim, coordenadora da Olimpíada de Matemática da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, sobre o “uso” da competição como auxílio pré-vestibular.

As competições de matemática são oportunas ainda pelo seu inquestionável espírito democrático. Enquanto o ingresso em boas universidades costuma ser dominado por quem pode pagar por cursos preparatórios ou mesmo porque estudaram em colégios de primeira linha, nas Olimpíadas as barreiras sociais não existem. É graças à visibilidade das competições que muitos potenciais talentos conseguem oportunidades que, de outro modo, não teriam. Além da medalha de prata e da bolsa integral em uma escola privada, o carioca da Vila da Penha, Franco, ainda ajudou a mãe, que é diarista, a concluir o ensino médio. Outro caso é o de Tábata Amaral de Pontes, saída de uma região periférica da capital paulista, filha de uma vendedora de flores e de um cobrador de ônibus, que faturou medalha de prata na Obmep aos 12 anos, evoluindo para o ouro no ano seguinte. Foi a partir daí que o Colégio Etapa ofereceu uma bolsa de estudos integral (e moradia próxima à escola) à estudante. Agora, aos 18 anos, Tábata foi aceita em seis universidades americanas. Escolheu Harvard.

Adeus playstation
Na sala de aula, os alunos também se destacam. Professora de matemática de Alessandro no Colégio Militar, Márcia Spindola garante que o pupilo tem uma postura normal nas aulas, apesar de considerá-lo um “pequeno gênio” e de ser, talvez, o melhor aluno de matemática da escola. “Às vezes o aluno fraco fica com uma espécie de ciúme e acaba alijando o colega muito bom. Mas isso não existe na nossa turma”, garante Márcia. A professora explica que, diferente de “bancar o ‘CDF’ que fica no cantinho”, Alessandro tem carisma e ajuda os colegas a compreender as matérias aplicadas.

A disciplina também influencia a vida pessoal dos estudantes. Daniel, que até a sexta série do ensino fundamental não demonstrava nenhum interesse especial pela matemática, hoje troca jogos de Playstation e passeios no shopping para participar de grupos de estudo com colegas olímpicos. Já para Franco, novos desafios matemáticos são sempre prioridade e, por isso, ele nem considera que “troca” outras atividades pela matemática. “Não vejo assim porque me divirto estudando”, diz. O estudante se permite, “às vezes” jogar bola, quando o esporte não atrapalha sua dedicação aos números. “Não penso ‘estou abrindo mão de uma diversão para estudar’. A matemática é minha maior paixão”, assegura.

Embora concordem que a matemática olímpica é muito mais instigante e motivadora que a exigida pelo currículo do ensino médio, os alunos não acreditam que ela possa ser incorporada à sala de aula. Murilo Corato Zanarella, 14 anos,  prata na OBM 2011, acha que há uma enraizada cultura de ojeriza aos números, que ainda pesa. “Na matemática da escola, já falta um pouco de vontade dos alunos em entenderem a matéria. E a matéria de Olimpíada você precisa realmente querer aprender”, postula. Mas mesmo o estudante que não tenha um talento natural com números não fica descoberto quanto à possibilidade de tentar se aventurar pela matemática olímpica, mesmo que seja apenas para conhecer a aprendizagem criativa que se pode tirar da disciplina. Desde abril deste ano, a OBM iniciou a operação de 19 polos de treinamento olímpico pelo país, que consiste em oferecer aulas especiais aos sábados, das 14h às 18h. Os interessados só passam por processo seletivo se a procura for maior que o número de vagas oferecidas. As aulas são filmadas e podem ser acessadas no site do projeto (pot.impa.br).

Também nesse rastro surgem iniciativas pessoais, como o projeto de Fernando Rocha na instituição de ensino onde leciona, o Colégio Estadual Bernardo Sayão (RJ), em que promove uma espécie de “cursinho olímpico”, com aulas às terças-feiras. Funciona com um professor auxiliando na parte didática, mas quem leciona mesmo são os próprios estudantes olímpicos. Segundo Fernando, a ideia é que o projeto vire uma filial da paulistana Vontade Olímpica de Aprender (Voa), cujo objetivo é o de preparar equipes de escolas públicas para as competições, com aulas aos domingos. Surgiu em 2009, pela iniciativa da menina prodígio Tábata em querer retribuir as chances que lhe foram dadas. Eis o espírito olímpico.

Currículo semi-olímpico

As questões olímpicas são formuladas a partir de quatro áreas de conhecimento: teoria dos números, álgebra, geometria e análise combinatória. O professor de matemática Carlos Yuzo Shine, líder da equipe brasileira na última Olimpíada Internacional, e que também trabalha na preparação de times americanos, aponta que o currículo de matemática das high schools (equivalente ao ensino médio brasileiro) tem um pouco mais de profundidade do que no Brasil. Mas, em linhas gerais, os programas são similares. “Embora possa dizer que nosso currículo de geometria é melhor”, ressalva. Carlos admite que o ensino formal não aborda todas as demandas olímpicas “e nem deve cobrir”, diz ele. Mas como as apostilas e provas da OBM e da Obmep vêm sendo adotados como material de apoio por professores em sala de aula, ele considera que o fortalecimento dos conteúdos acontecerá aos poucos, de forma natural. “O importante é, em primeiro lugar, melhorar o ensino básico de todos, ou seja, se comprometer a ensinar o currículo atual direitinho. Só então deve-se pensar em aprofundar, e em quanto aprofundar”, indica.

Sucesso também no português

As Olimpíadas de Língua Portuguesa (OLP) também têm colecionado boas histórias. Os alunos vencedores viraram personagens de campanha publicitária do Ministério da Educação, que “convoca” os estudantes para se inscreverem nas próximas edições. A série de filmes referente à terceira OLP acaba de ganhar o Prêmio Colunistas Propaganda Brasília 2012. Dirigidos por Toni Venturi, diretor do longa Cabra Cega, entre outros, os filmes trazem imagens sobre os poemas, narrados em terceira pessoa e, posteriormente, pelos próprios alunos. Sob o mote “escrever é ser autor da própria história”, as peças mostram a qualidade da produção textual dos alunos das escolas brasileiras. A estudante de Cruzeiro do Sul (AC), Eduarda Moura Pinheiro, escreveu o seu poema a partir da história de sua própria professora: não quero esquecer aquele cantinho só meu, que há muito tempo só existe em minha memória (…) o verdor da floresta foi sendo engolido pela motosserra/ Eu, impotente, assisti a tudo/ Mataram-me a mata e parte da minha história/ E nada pude fazer para impedir.

Autor

Fábio Fujita


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