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Entrevistas

Tarefa coletiva

Pesquisadora da Unesco aponta a atuação individualista do professor na grade curricular como um dos principais entraves para a melhoria do ensino secundário na América Latina

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação

A
educadora uruguaia Beatriz Macedo trabalha na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 1995, na Oficina Regional de Educação para a América Latina e o Caribe, em Santiago (Chile). Dois anos depois, assumiu a função de especialista regional em Educação Científica e Secundária. Um dos projetos desenvolvidos ali é o Observatório da Educação Secundária, que visa divulgar boas experiências de países da região – não para serem copiadas, diz ela, mas para inspirar mudanças a partir dos contextos locais.

Entre essas experiências, ela cita o secundário básico cubano, com um só professor por turma, e a integração brasileira entre ensino técnico e médio. Doutora em Educação Científica pela Universidade de Paris 7, organizadora de Cultura Científica: Um Direito de Todos (Unesco, 170 págs., distribuição gratuita), Beatriz Macedo conversou em Brasília com Alceu Luís Castilho, da Agência Repórter Social, sobre a educação para todos “e todas”, como gosta de dizer.



Por que o individualismo caracteriza os professores secundários?



A educação secundária foi estruturada, do ponto de vista curricular, em quase toda a região latino-americana, em função das disciplinas. Em áreas de conhecimento e, mais do que isso, disciplinas.
Aqui, há vários aspectos a considerar. Primeiramente, a maioria dos professores do ensino secundário em muitos países latino-americanos trabalha em mais de um centro educativo. Eles dão suas aulas, em suas disciplinas, e têm de ir a outro estabelecimento. Portanto, o tempo de permanência na escola coincide com o horário de aulas. Isso faz com que o professor tenha menos disponibilidade.
Por outro lado, tem sido difícil obter grupos de trabalho em que estejam presentes todas as disciplinas. Isso é o que está mudando, o que deveríamos mudar. Primeiro, reconhecer que o trabalho docente não é mais um trabalho individual. E o professor trabalha hoje em sua casa para preparar aulas, não há tempo na própria instituição – pelo menos na secundária.
Nada disso contribui para que se gere um trabalho coletivo. Há uma tendência recente em reconhecer que o trabalho docente é uma tarefa coletiva.



Como tratar o aluno como finalidade?



Deve ser mudado o foco. Estávamos acostumados, no ensino médio, a uma educação em ciências. A mudança de foco implica uma educação por meio das ciências. Na disciplina física, por exemplo, os conhecimentos são meios para a formação dos alunos, e não um fim em si mesmos. Nenhum conteúdo deve ser considerado, na nossa profissão, um fim em si mesmo, mas sim meios para contribuir para a formação desses futuros cidadãos e cidadãs. As perguntas que temos feito são muito antigas, mas as respostas devem ser novas: para quem se está ensinando cada campo de conhecimento e o que será objeto de aprendizagem? Em geral, a lógica da elaboração dos programas tem sido a própria lógica das disciplinas.
Claro que as ciências têm uma grande contribuição para a formação cidadã. Então, é preciso saber buscar quais os conteúdos científicos para que realmente a ciência esteja a serviço da formação desses cidadãos e cidadãs. Por que pensamos que os mesmos conteúdos devem ser ensinados, se os cenários estão mudando, se as necessidades sociais vão mudando? Se as preocupações e os interesses das populações que estão nas nossas aulas vão mudando? Educação secundária inclusiva é educação que inclui a  todos. Há uma grande porcentagem de alunos que abandonam o ensino secundário. Porque não se sentem incluídos. A exclusão educacional é uma ferramenta da exclusão social. De cada três estudantes que começam o ensino secundário, dois o abandonam.





Há diferença de gênero?


Será publicado em breve um estudo da Oficina Regional sobre o que acontece com o acesso e a conclusão da educação secundária. Ele mostra que na América Latina há grupos marginalizados.
Por razões geográficas: não podemos comparar o que se passa na região urbana com a rural. Na zona rural, as crianças muitas vezes não chegam ao ensino médio porque não há oferta. A única opção é ir a outro lugar. Há um problema de discriminação segundo regiões e segundo gênero. Há países em que existem problemas na comparação entre homens e mulheres, mas há outras regiões na América Latina e Caribe onde os que cursam menos a escola secundária são os homens.



A qualidade implica eqüidade?



Não. A qualidade inclui a eqüidade. São dois conceitos que devem ser considerados de maneira simultânea. De nada serviria falar de qualidade para poucos.
O importante é que ela inclua a eqüidade, que seja para todos. Agora, quando falamos de qualidade para todos, isso implica que os sistemas educativos têm cada vez mais de atender à diversidade e à heterogeneidade. Falar de eqüidade e trabalhar por eqüidade – e, na América Latina, o problema é um grande tema pendente, pois é a região mais desigual do mundo – não significa fazer propostas homogêneas. Em algum momento, se pode pensar que, para assegurar a eqüidade, deve-se dar tratamento homogêneo a todos. E não. Pois estamos tratando de populações essencialmente diversas. Há países que estruturam o currículo por disciplinas e outros, por áreas.



Quais as desvantagens de cada um?



O problema do ordenamento curricular por áreas ou disciplinas também deve ser analisado pela cidade onde estão os alunos e pelos contextos. Não há receitas. Independentemente da opção que se faça, ela deve ser fundamentada com base em critérios comparativos. Passamos, às vezes, por modismos, sem que os próprios docentes tenham tempo de saber quais as bases epistemológicas, pedagógicas, didáticas, psicológicas, filosóficas que sustentam uma proposta ou outra. Não é o mesmo pensar em uma proposta curricular e, portanto, em seu ordenamento, para alunos entre 15 e 18 anos e para aqueles entre 10 e 14 anos. Não podemos utilizar os mesmos critérios. É importante conhecêlos e, em função deles, optar, e a opção tem de ser de cada país. Os argumentos a favor das áreas funcionam mais para as crianças menores. Elas se aproximam dos problemas cotidianos como um todo. O ordenamento por disciplina parcela o conhecimento, e depois o aluno deve integrá-lo para poder se aproximar de um fenômeno natural, por exemplo. Quando enfrentamos um problema cotidiano, o enfrentamos por prateleiras. Como um aluno pequeno pode separar as coisas por prateleiras e integrá-las? E epistemologicamente, também, se estudou que as áreas não podem ser formadas eliminando-se as disciplinas.
Podemos pensar em áreas ou em conjuntos de disciplinas que tenham coisas em comum. É lógico pensar e propor algo assim, mas isso não implica eliminar as disciplinas. Outro aspecto muito importante no momento de definir o trabalho por áreas ou discipli nas é saber como são e como se formaram os docentes. Muitas vezes se fez uma proposta de ordenamento curricular distinto, e os professores não foram formados para trabalhar com esse tipo de ordenamento.



A senhora diz que cada vez se pedem mais coisas à escola.



Cada vez que há uma temática nova, importante, uma transformação social, trata-se de transformar isso em um conteúdo escolar. Muitas vezes são definidas novas disciplinas ou se incluem temas em disciplinas existentes. Isso em relação aos conteúdos. Mas estão cobrando também mais funções da escola. Há instituições sociais que estão muito débeis. E muitas vezes a escola deve cumprir suas funções.



A família é uma dessas instituições?



Por exemplo. As famílias tradicionais enfrentam dificuldades, os pais e as mães trabalham muitas horas, e as crianças não contam com o apoio familiar, afetivo. Então, se requer à escola algo além do que lhe é próprio.



Quais as experiências na América Latina mais interessantes, digamos, para exportação?



Não creio que existam experiências de exportação. Penso que cada país pode decidir e eleger os próprios projetos. O importante é conhecer e nos conhecermos. Criamos na Unesco um Observatório da Educação Secundária. Ele foi definido como um espaço que permitirá observar, observar-nos e observar-se.
O importante é conhecer outras experiências em outros países que, às vezes, têm realidades parecidas, poder analisar o que cada país está fazendo em função de como percebemos a realidade. O intercâmbio significa saber como alguns países tomaram decisões para resolver os problemas. Os problemas são comuns. Muitos deles são semelhantes, no caso da educação secundária. No entanto, as soluções não têm de ser as mesmas. Não há experiências a serem copiadas. Há muitas, e válidas, para serem conhecidas, e a partir daí haver o intercâmbio. Cuba tem uma experiência distinta e recente, a ser observada, no que eles chamam de secundário básico, no sétimo, oitavo e nono ano de escolarização. Nesses três anos, agora há um único professor, que dá todas as disciplinas, para evitar que um aluno de 13 anos enfrente 13 professores.
Esse professor é auxiliado por vídeos, feitos por professores por área de conhecimento. É uma proposta totalmente distinta, que trata de resolver o problema do parcelamento de conhecimento.
Ela trata de privilegiar o clima afetivo que rodeia esse aluno, acompanhado pelo mesmo professor para facilitar o aprendizado. Privilegiou-se também a relação aluno-docente, pois cada docente trabalha com 15 alunos.





Quais outras experiências?


Um dos grandes temas da educação média é a relação entre a formação generalista e a formação para o trabalho.
Na América Latina, isso é chamado de educação secundária e educação técnica. O Brasil está fazendo algo diferente, que pretende terminar com esse grande divórcio e esses caminhos paralelos que significaram discriminação.
Tampouco digo que seja para copiar, mas para conhecer, ver quais são os fundamentos da experiência. O Chile tem o Liceu para Todos. Quase todos os países têm coisas interessantes nascendo, tratando de melhorar a qualidade de um secundário para todos.
Vários governos latino-americanos têm origem na esquerda ou centroesquerda.





Em muitos casos, porém, a política econômica não tem a ver com essa orientação. E a educação?


Em 2002, a Unesco e os países da América Latina, em reunião em Havana (Cuba) com os ministros da Educação, comprometeram-se com um novo projeto regional de educação para a América Latina e o Caribe. O compromisso é assegurar a todos uma educação de qualidade. São propostas que têm de fazer todos os países. Assegurar – não pretender – uma educação de qualidade, para todos e para todas. Evidentemente, isso está relacionado a outras políticas sociais. A educação não é uma ilha no meio do país. Então, haverá situações mais ou menos favoráveis.
Mas o compromisso é de todos. E deve ser sustentável. A educação tem de ser uma política de Estado, transcender a política de governo.



Isso é o que deve ser.



Não, o compromisso já foi assumido. Está no marco de Dakar [de Educação para Todos, em 2000] e foi ratificado e adaptado – mais do que isso, contextualizado – em Havana.



Mas os governos da região parecem estar mais preocupados com a integração da infra-estrutura do que a educacional e cultural, não?



Nesse projeto se fala justamente de como as reformas devem estar baseadas nas pessoas, e não nos insumos. Portanto a educação deve estar no centro.

Autor

Redação revista Educação


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