NOTÍCIA
Reitor da Universidade de Lisboa defende um novo olhar para o ofício de professor, assentado em quatro eixos: formação, cultura profissional, avaliação e intervenção pública
Publicado em 10/09/2011
No difícil e urgente tema da formação de professores, poucos autores são tão citados como o português António Nóvoa. Reitor da Universidade de Lisboa, Nóvoa ressente-se de ter reduzido o tempo para escrever e pesquisar. Mesmo assim, vem propondo novas perspectivas para a compreensão do problema, que tem dimensões planetárias.
Agora, por exemplo, dedica-se ao que chama de “construir lógicas de comparação” entre os sistemas educativos em diferentes países do mundo, inclusive aqueles que não adotaram as métricas de avaliação mais difundidas, como o Pisa
(sigla em inglês que designa o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes).
Ao mesmo tempo, Nóvoa vem produzindo artigos e ensaios que originaram o livro Os professores – Imagens do futuro e do presente, recém-lançado em Portugal, e que espera publicar em breve também no Brasil. E já sonha com o próximo. “Nos tempos que correm, de tanto ruído e agitação, gostaria muito de escrever um livro sobre a pedagogia do silêncio”, conta na entrevista concedida, via e-mail, ao repórter Paulo de Camargo.
No Brasil, vivemos um momento de grande discussão sobre a formação do professor, o que inclui a formação inicial, nas universidades, até a valorização dos profissionais mais experientes. Hoje, esta é uma questão mundial?
É uma questão de âmbito mundial. Num texto recente, apresentei cinco teses sobre a formação de professores, que respondem à sua pergunta. É impossível desenvolvê-las, mas posso enunciá-las. A formação de professores deve:
a) assumir uma forte componente prática, centrada na aprendizagem dos alunos e no estudo de casos concretos;
b) passar para “dentro” da profissão, isto é, basear-se na aquisição de uma cultura profissional, concedendo aos professores mais experientes um papel central na formação dos mais jovens;
c) dedicar uma atenção especial às dimensões pessoais, trabalhando a capacidade de relação e de comunicação que define o tato pedagógico;
d) valorizar o trabalho em equipe e o exercício coletivo da profissão;
e) estar marcada por um princípio de responsabilidade social, favorecendo a comunicação pública e a participação dos professores no espaço público da educação.
Onde está o coração do problema da formação dos professores? É a reestruturação dos cursos de pedagogia? Ou são as políticas de apoio ao professor nos primeiros anos de atuação, ou ainda as estratégias de formação em serviço?
Todos esses aspectos devem ser considerados. Chegou o tempo de fazermos uma verdadeira revolução na formação de professores. O que existe é frágil. A interligação entre as questões do ensino, da investigação e das práticas escolares e a participação efetiva dos profissionais na formação dos futuros professores são fundamentais para que se crie um novo modelo de formação de professores. Não nascemos professores. Tornamo-nos professores por meio de um processo de formação e de aprendizagem na profissão. É neste sentido que falo de passar a formação de professores para “dentro” da profissão. Quem forma os médicos são outros médicos. O mesmo devia acontecer na profissão docente.
Pelo que conhece do Brasil, quais são as principais distorções no sistema atual de formação de professores?
Ouço muitas críticas. Pelo meu lado, tenho procurado chamar a atenção para dois momentos fundamentais que têm sido ignorados ao longo das últimas décadas, não só no Brasil, mas em muitos países, o que revela bem a confusão que hoje existe nas políticas e nos programas de formação de professores. O primeiro momento corresponde à entrada num curso que habilita para a docência. O atual processo, burocrático e administrativo, não faz qualquer sentido. É urgente introduzir um recrutamento mais individualizado, que permita perceber as inclinações e as disposições de cada um para se tornar professor. E é preciso criar as condições para que os melhores alunos do ensino médio escolham a profissão docente. Ser professor não pode ser uma segunda escolha. O outro momento é a transição de aluno (como se dizia no passado, de aluno-mestre, isto é, de aluno que aprende para ser mestre) para professor principiante.
Os primeiros anos de exercício docente são absolutamente fundamentais. E ninguém cuida destes anos, nos quais se define grande parte do percurso profissional de cada um. É urgente criar formas de acolhimento, de enquadramento e de supervisão dos professores durante os primeiros anos da sua atividade profissional.
Uma política de piso salarial, como a que está sendo implementada no Brasil, por si só é garantia de aprimoramento no sistema? Ou é uma condição necessária, mas não suficiente?
É uma condição necessária, mas não suficiente. A sociedade pede aos professores que resolvam todos os problemas das crianças e dos jovens, e acredita que é na escola que se define um futuro melhor. A sociedade pede quase tudo aos professores e dá-lhes quase nada. É um contrassenso, para não dizer uma hipocrisia. A profissão de professor necessita de ser revalorizada do ponto de vista salarial, mas também no que diz respeito ao seu estatuto social e profissional.
No Brasil, frequentemente é apontado o corporativismo da classe profissional dos professores, que recusa, por exemplo, políticas de remuneração por mérito ou desempenho, bem como práticas de avaliação de sua atuação profissional. Como o senhor vê esses temas?
Tenho chamado a atenção para uma nova profissionalidade docente, que passa por quatro aspectos: formação, cultura profissional, avaliação e intervenção pública. Em todos eles, advogo um maior poder dos professores sobre a sua própria profissão, invertendo tendências das últimas décadas. Já falei da formação. Falarei agora da avaliação. É uma dimensão central de qualquer profissão. A crise da educação só será superada através de uma exigente prestação de contas. A confiança e a credibilidade são essenciais para o trabalho dos professores. E conquistam-se em grande parte por meio da avaliação e da comunicação pública com a sociedade. Mas os dispositivos de avaliação devem servir para reforçar a autonomia dos professores e não para um maior controle do Estado ou para impor critérios economicistas na regulação da profissão.
Certa vez, o senhor apontou a contradição das políticas de iniciação profissional dos professores brasileiros, ou seja, os mais inexperientes acabam nas periferias, nas escolas ditas ‘difíceis’. Como, a seu ver, deveriam ser os primeiros anos de trabalho do professor?
Os jovens professores deveriam ser protegidos nos primeiros anos de exercício. Como os médicos. Ninguém começa sozinho a fazer operações complexas para, à medida que se torna um médico mais experiente e competente, se dedicar apenas a curar constipações. Devia ser assim também com os professores. As situações escolares mais difíceis deviam estar a cargo dos melhores professores. Infelizmente, é para estas situações que os jovens professores são muitas vezes lançados sem qualquer apoio. É um erro de graves consequências.
O senhor acredita nos modelos de tutoria (ou coaching) dos professores mais novos por profissionais da educação mais experientes?
Sim. É muito importante a socialização profissional que é feita pelos mais experientes junto dos mais jovens. A transição de uma cultura de isolamento para uma cultura colaborativa é um aspecto decisivo para os professores. Trabalho em equipe. Colaboração. Partilha. Sem isso, é impossível enfrentar os problemas educativos atuais. Nem todos os professores são iguais. É preciso que haja referências dentro da profissão – aqueles professores que reconhecemos como profissionais de grande competência e dedicação e que devem ter um papel no enquadramento dos mais jovens.
Há uma corrida no mundo pelos indicadores de qualidade – basicamente, o desempenho dos jovens no campo da leitura e dos números, em projetos de avaliação como o Pisa. O foco exclusivo nesses índices não acaba por induzir a uma visão limitada do que seja o papel da educação?
Hoje em dia, esse tipo de estudos de avaliação cumpre uma função essencial nas políticas educativas no plano internacional. São indicadores que traduzem uma visão empobrecida da educação, mas que não podem ser ignorados. É preciso fazer a sua leitura crítica, a sua interpretação e construir modelos alternativos de comparação. Uma parte do meu trabalho nos últimos anos tem sido, justamente, a tentativa de construir lógicas de comparação entre países que não estejam prisioneiros dessas “hierarquias” e que nos permitam um olhar crítico sobre os sistemas educativos.
Com o advento das novas tecnologias e com a crise dos modelos educacionais, muitos pesquisadores começaram a prever o surgimento de uma nova escola. O senhor está entre aqueles que acreditam em mudanças profundas no modelo tradicional da escola? Ou estamos a aprimorar uma concepção bancária de educação, como diria Paulo Freire?
De fato, não tem havido a produção de um novo modelo de escola. As tecnologias são muito importantes e têm contribuído para algumas mudanças no ensino e na aprendizagem. Mas elas, por si só, não alterarão o nosso modelo de escola. Se perdermos o sentido humano da educação, perdemos tudo. Só um ser humano consegue educar outro ser humano. Por isso tenho insistido na importância das dimensões pessoais no exercício da profissão docente. Precisamos de professores interessantes e interessados. Precisamos de inspiradores, e não de repetidores. Pessoas que tenham vida, coisas para dizer, exemplos para dar. Educar é contar uma história, e inscrever cada criança, cada jovem, nessa história. É fazer uma viagem pela cultura, pelo conhecimento, pela criação. Uma viagem, para recorrer a Proust, na qual mais importante do que encontrar novas terras é alcançar novos olhares. É nesse sentido que apreendo, hoje, o contributo tão significativo de Paulo Freire para pensar a educação numa perspectiva crítica e progressista.
Para finalizarmos, o senhor poderia sintetizar qual deve ser a função do professor na educação contemporânea? A que requisitos deve atender, como deve ser sua formação?
Sabemos todos que é impossível definir o “bom professor”, a não ser através dessas listas intermináveis de “competências”, cuja simples enumeração se torna insuportável. Mas é possível, talvez, esboçar alguns apontamentos simples, sobre o trabalho docente nas sociedades contemporâneas.
O conhecimento. Aligeiro as palavras do filósofo francês Alain: Dizem-me que, para instruir, é necessário conhecer aqueles que se instruem. Talvez. Mas bem mais importante é, sem dúvida, conhecer bem aquilo que se ensina. Alain tinha razão. O trabalho do professor consiste na construção de práticas docentes que conduzam os alunos à aprendizagem.
A cultura profissional. Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar, integrar-se numa profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no diálogo com os outros professores que se aprende a profissão.
O tato pedagógico. Quantos livros se gastaram para tentar apreender esse conceito tão difícil de definir? Nele cabe essa capacidade de relação e de comunicação sem a qual não se cumpre o ato de educar. E também essa serenidade de quem é capaz de se dar ao respeito, conquistando os alunos para o trabalho escolar. No ensino, as dimensões profissionais cruzam-se sempre, inevitavelmente, com as dimensões pessoais.
O trabalho em equipe. Os novos modos de profissionalidade docente implicam um reforço das dimensões coletivas e colaborativas, do trabalho em equipe, da intervenção conjunta nos projetos educativos de escola.
O compromisso social. Podemos chamar-lhe diferentes nomes, mas todos convergem no sentido dos princípios, dos valores, da inclusão social, da diversidade cultural. Educar é conseguir que a criança ultrapasse as fronteiras que, tantas vezes, lhe foram traçadas como destino pelo nascimento, pela família ou pela sociedade. Hoje, a realidade da escola obriga-nos a ir além da escola. Comunicar com o público, intervir na sociedade, faz parte do ethos profissional docente.