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O que ensinar?

Um olhar do crepúsculo para a infância

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação

 Numa manhã, ainda na cama, pus-me a pensar em como usar a minha vida nos anos que me restam. É normal que isso aconteça com os velhos. Quando os anos são poucos os dias se aceleram e o pensamento se põe a procurar, no meio das brumas e das espumas,  o que é essencial.

Tempo curto é tempo crepuscular. E o crepúsculo é uma mistura de beleza e tristeza. Albert Camus escreveu em seus
Cadernos:

“Céu de trovoada em agosto. Aragem escaldante. Nuvens negras. No entanto, do lado do nascente, uma faixa azul, delicada, transparente. A sua presença é uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo afora”.

Faz muito tempo que mandei esculpir em madeira uma frase latina que tenho agora pendurada na varanda:
Tempus fugit

– o tempo foge.

Na minha sonolência lembrei-me de Hermann Hesse, escritor que marcou minha geração e que também se propôs a mesma pergunta. Fui ao escritório e tirei da estante o livro
O jogo das contas de vidro

. Procurei nele as marcas que fiz quando o li, muitos anos atrás.

O personagem central do romance é Joseph Knecht, mestre supremo de Castalia, uma ordem monástica que se dedicava ao cultivo e gozo da beleza. Seu ponto culminante era uma celebração anual, chamada “Jogo das contas de vidro”. Esse jogo se inspirava na brincadeira musical denominada “variações sobre um tema”. Brincar com a beleza. Knecht era o regente da beleza, 
magister ludi

, o “mestre do jogo”.

Mas agora ele estava velho. As cores da vida estavam esmaecendo e a alma se sentia dominada pela nostalgia da morte. Tendo atingido o ponto máximo da sua carreira, viu-se invadido pelo desejo de deixar tudo e se dedicar a educar uma criança “que ainda não tivesse sido deformada pela escola”. Deixa a ordem monástica a que pertencia e se torna tutor de um menino.

Ele então explica o seu gesto. “
A melhor coisa que a minha posição como

Magister Ludi
me deu foi a descoberta de que fazer música e tocar Bach não são as únicas atividades felizes na vida, e que ensinar e educar  podem ser igualmente atividades que nos trazem grande felicidade. Aos poucos descobri, além disso, que ensinar me dá tanto mais  prazer quanto mais jovens e não estragados pela deseducação os alunos são. Isso fez com que, ao passar dos anos, eu desejasse ser um professor numa escola primária…”

Meditando sobre essa condição, descobre um poeminha de Rückert que continha o resumo da sua sabedoria de velho:
“Nossos dias são preciosos mas com alegria os vemos passando se no seu lugar encontramos uma coisa mais preciosa crescendo: uma planta rara e exótica que traz alegria ao nosso coração jardineiro, uma criança que estamos ensinando, um livrinho que estamos escrevendo…”

Escrever um livrinho, plantar um jardim, ensinar uma criança. Essas são as vocações que me comovem. Livrinhos para crianças, já escrevi muitos. Jardins, não sei quantos plantei. Agora sinto que gostaria de ser um professor de crianças ainda no curso primário. As crianças nos salvam do envelhecimento triste. Recordo o que Bachelard disse sobre elas:
“Na idade do envelhecimento a lembrança da infância devolve-nos aos sentimentos finos, a essa “saudade risonha” das grandes atmosferas baudelerianas.  A infância não é uma coisa que morre em nós e seca uma vez cumprido o seu ciclo. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saibamos”. Eu quero voltar às crianças para me salvar…


Rubem Alves


Educador e escritor


rubem_alves@uol.com.br

Autor

Redação revista Educação


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