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La porte-plume redevient oiseau

"'Há histórias tão verdadeiras que, às vezes, parece que são inventadas'. A história da Ana é uma delas". Leia aqui mais um texto de José Pacheco

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



O Manoel de Barros, no seu “Livro Sobre Nada”, diz-nos que: “há histórias tão verdadeiras que, às vezes, parece que são inventadas”. A história da Ana é uma delas. Contarei ao Marcos episódios da vida dessa maravilhosa mulher. Começando pelo princípio – os velhos têm súbitos caprichos e, hoje, apetece-me ser redundante -, situemos o primeiro episódio num dia em que a Ana foi à escola.



É minha obrigação referir que todas as aspas enquadram e reproduzem palavras da Ana, religiosamente escutadas, num saboroso exercício dessa tão difícil arte da escutatória, de que o Rubem nos fala. O Rubem recorre ao talvez neologismo “escutatória”, por oposição aos excessos de “oratória” (quem nunca leu o Rubem não perca mais tempo). Serão muitas as aspas de citar a Ana, pelo que este texto (poderei dizê-lo com toda a propriedade), será de sua autoria. Eu apenas o darei a conhecer.



A história fez-me recordar um conhecido poema do Jacques Prévert, que dá pelo título de “page d´ecriture”. Àqueles leitores que, eventualmente, não conheçam o poema (quem nunca leu não perca mais tempo), direi que nos fala de uma criança-aluno que, perante a monotonia da aula, dela se “ausenta”, conduzido pela imaginação.
E termina deste modo: “l’encre redevient eau / les pupitres redeviennent arbres /la craie redevient falaise / la porte-plume redevient oiseau».




Na história da Ana, uma mosca substitui o pássaro do poema do Jacques, mas vem a dar no mesmo. No tempo em que Jacques e Ana passaram pelo ofício de alunos, todas as crianças saudáveis fugiam à monotonia das aulas pelas frestas que a imaginação lhes oferecia. Se a Ana leu o poema, não sei. Mas descreveu-me o último quarto de hora de uma das suas aulas tal e qual o contei ao Marcos. Passo a palavra à Ana.



“Olho o relógio. Graças a Deus, já só faltam quinze minutos para a campainha tocar. O professor caminha lentamente entre as filas de carteiras, falando, falando.. Os alunos estão imóveis, quase de mármore, a olhar os livros com olhos desfocados. O silêncio é ensurdecedor. Só passaram cinco minutos. Tenho os músculos tensos. Concentro-me no que vou fazer, quando a campaínha tocar: pegar na mala, vestir o casaco, e porta fora!



Escuto o arfar nervoso da minha colega de carteira. E eu quase não consigo respirar. Os nós dos dedos estão brancos do esforço que faço sobre a caneta. Uma mosca poisou na minha carteira. Tem umas lindas asas. Limpa-as, asseadinha que é. Será macho ou fêmea? É difícil saber. Já vi duas moscas coladas, mas nunca vi o sexo da mosca. Talvez, se olhar mais de perto. Oh! Fugiu! Quem me dera ser mosca!



Os meus olhos voltaram-se para o mostrador do relógio. Começo a contar os segundos e o meu pé marca o ritmo: três. dois. um. O quê?!! Que aconteceu? A campaínha não tocou! DRRIIIIM! As estátuas ganham vida, as escadas são torrentes de vida reprimida, as portas sangram vida.



Largo a mala no meio do quintal. Como um raio, subo à minha árvore favorita. Vejo-me, saboreando frutos, no balancear dos ramos. A brisa põe flores do campo nos meus cabelos.


Abro os olhos. Como é possível que dez minutos possam durar uma eternidade?”.



Estava no auge da história e vejo o Marcos com olhos de quem quer fazer perguntas. Interrompi a narrativa.



– Ó avô, a escola do teu tempo também era assim?



Um avô não pode mentir. Não houve outro remédio senão dizer-lhe a verdade. Que era mesmo assim: com aulas, campainhas, moscas e pássaros.



– E a escola para onde eu vou? Como é? Diz lá, avô! Também é assim? Diz, avô!…



Não respondi. Não tive coragem de lhe dizer que a escola que o espera é idêntica, em quase tudo, à escola da Ana, à escola que foi minha, à do Jacques, à dos meninos do século XX, e também dos meninos das escolas que o século XIX conheceu.



Se a prática de um dentista não acompanhasse a evolução da produção teórica no campo da Medicina, ainda hoje nos curvaríamos sobre uma bacia de barbeiro, para que o dentista nos arrancasse os dentes com uma tenaz. Se um engenheiro recusasse ler e pensar, se prescindisse do recurso à literatura científica e à experimentação, ainda hoje viajaríamos em carroças puxadas por asininos. Ao desenvolvimento das duas ciências correspondeu a mudança, a inovação. A complexidade e a sofisticação de processos é tal nessas profissões, que ninguém ousa questionar o saber e a prática de um médico, ou de um engenheiro. E que dizer da profissão de professor?






É muito frequente lermos artigos, invectivando as chamadas “novas pedagogias”, atribuindo-lhes a responsabilidade por todos os males que afectam o sistema. Dá vontade de perguntar aos autores desses artigos: quantas escolas adoptaram as famigeradas “novas pedagogias”? Se alguém souber onde se esconde alguma dessas escolas, que faça a bondade de me facultar o endereço. Ainda irei a tempo de evitar que o meu neto passe pelos padecimentos por que a Ana passou.




Leia também os outros textos publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:




Redundâncias





Educar da cidadania





O pai do Watson





O Senhor Carlos





A divisão das orações





Bem pelo contrário!…





A caixinha dos segredos





O padre, o poeta e a professora de francês





Para os filhos dos filhos dos nossos filhos





Tempus fugit




Autor

Redação revista Educação


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