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Entrevistas

Fernando Savater: "Os professores estão abandonados"

Pensador espanhol aposta na criação de partido político e afirma: educação é o elo que nos vincula ao homem e a seus bens simbólicos

Publicado em 10/09/2011

por Fernando Savater

O desenvolvimento humano de uma sociedade pode ser medido por meio de dois fatores: o tratamento dispensado aos prisioneiros e aquele dado aos professores, em especial aos do ensino fundamental. É o que defende o professor de ética da Faculdade de Filosofia da Universidade de Madri, Fernando Savater. O filósofo espanhol escolheu a segunda vertente para dedicar a sua reflexão intelectual, dada a escassez de pesquisas sobre o tema. E tenta fazê-lo de maneira inovadora: não só busca distinguir causas e efeitos da atual crise educacional em todos os âmbitos sociais, como também indica novas vias para superá-la e conclama políticos, professores e, sobretudo, os próprios jovens a discutir e participar plenamente dessa reflexão. Dessa forma, acredita, cada um poderá oferecer sua contribuição, a partir do papel que desempenha no processo educativo. Em livros como Desperta e Lê (Martins Fontes), O Valor de Educar, Ética para meu Filho e Política para meu Filho (os três editados pela Planeta Brasil), Savater se dirige diretamente aos protagonistas da educação, com eles compartilhando perplexidades e esperanças. À cátedra, Savater agora acrescentou o palanque – tarefa que consome a maior parte do seu tempo – na lida para a formação do Partido União, Progresso e Democracia. A política, aliás, é um de seus temas prediletos, que utiliza para uma redefinição dos valores da democracia contemporânea em termos de pluralismo e tolerância, principalmente diante dos desafios que a imigração, clandestina ou não, apresenta hoje aos europeus em geral. Entre um telefonema e outro, Fernando Savater concedeu a presente entrevista a Bianca Fraccalvieri. Nela, esclarece algumas de suas teses e trata das principais dificuldades que a arte de educar impõe.


O senhor afirma que a verdadeira educação não consiste somente em ensinar a pensar, mas "em aprender a pensar sobre aquilo que se pensa". O que isso significa?

Creio que a educação tenha certamente de transmitir conhecimentos, conhecimentos reais, não basta somente aprimorar habilidades. Porém, por outro lado, devido ao fato de os conhecimentos atuais mudarem muito, se ampliarem, hoje o importante é ter uma disposição capaz de refletir sobre a informação. Antigamente, a educação buscava informar, porque não havia outras fontes de informação. As crianças necessitavam ser informadas por meio de notícias, dos fatos do mundo, da ciência. Mas hoje recebemos informações a partir de muitos canais, como a internet e a televisão. Por isso, o importante é ensinar a capacidade de refletir e organizar. Refletir sobre essas informações e descartar as menos válidas, ter uma mente capaz de ordenar o que se sabe, e não uma mente simplesmente cheia de dados e de notícias.


O senhor define a educação como a revelação do outro. Em que sentido?

Por meio da educação, nós descobrimos as nossas capacidades. A educação tem uma dimensão de transmissão de conhecimentos e de capacidades. Mas há também um descobrimento dessa dimensão social, dessa dimensão simbólica que nos une aos demais. A criança está acostumada a viver em um mundo familiar, em um mundo um pouco privado, separado dos outros. Por meio da educação, ela conhecerá os vínculos capazes de uni-la aos outros cidadãos, aos outros países, ao mundo. E esse mundo simbólico no qual os homens vivem se descobre por meio da educação.


Na sua análise da sociedade contemporânea, o senhor identifica um eclipse da família, pois os pais não querem ser pais e incumbem o Estado dessa tarefa, o que obriga o Estado a ser ainda mais paternalista. Também os pais devem ser educados para se tornar pais?

Não é uma questão fácil, por isso acredito que devemos tentar educar os filhos, porque educar os pais é impossível. Os pais conscientes e reflexivos já estão grandes para educar a si mesmos, para pensar na educação dos filhos. Os pais conscientes tentarão formar-se, ler, acudir os filhos, acompanhá-los na vida escolar. Mas isso é um ato voluntário, não podem ser obrigados a fazê-lo. O importante é formar as crianças, para ter melhores pais e melhores cidadãos no futuro.


Em O Valor de Educar, o senhor afirma que a escola atual enfrenta uma dupla missão: suprir as carências na formação básica da consciência social e moral das crianças e competir com a socialização hipnótica e acrítica da televisão. Não é uma tarefa grande demais para uma escola que, ao menos no Brasil, muitas vezes não consegue nem mesmo alfabetizar?

Certamente é uma missão árdua, mas será que temos outra alternativa? Temos de cumprir essa missão. Há países, como o Brasil, que não têm recursos, porque a boa educação é uma educação cara. Mas é possível renunciar a educar os jovens e as crianças?

Se a boa educação é cara, a má educação é ainda mais cara. Por isso, é vital convencer a sociedade da importância da educação. A educação exige um desembolso econômico considerável, exige uma boa preparação dos professores, exige todo um compromisso social. Não temos nenhuma alternativa. Dizer que as coisas são difíceis quando não temos mais remédios para fazê-las não é a solução.


O senhor define a pedagogia mais como uma arte do que como uma ciência, que necessita mais da intuição e da capacidade de seduzir do que de seus conhecimentos científicos. Diante das desastrosas condições de trabalho, não se pede muito aos professores?

Sim, creio que esse seja um problema em quase todos os países. Exige-se muito dos professores, mas eles não são retribuídos. Além disso, eles recebem uma preparação deficiente, sobretudo os do ensino fundamental, que são os mais importantes, porque se não cumprem bem  seu trabalho, não se pode educar. Os professores, praticamente em quase todos os países, estão um pouco abandonados pela sociedade. A sociedade não lhes dá ouvidos. Quando há um momento de participação social através dos meios de comunicação, os docentes não são ouvidos. Eu creio que seja verdade que eles são muito exigidos. Agora, por exemplo, pede-se que os professores resolvam os problemas de intolerância, de xenofobia, porém não lhes são dados os meios para fazer isso.


Em sua última visita a Roma o senhor falou sobre a intolerância. Na Itália, por exemplo, em algumas salas de aula há mais estudantes estrangeiros que italianos – o que representa um desafio para o sistema escolar. Como se educa para a tolerância?

Não há um método único. A tolerância tem de ser um princípio das sociedades pluralistas e temos de ensinar a conviver com aquilo de que não gostamos. Tolerar não é considerar que tudo é igual, que tudo é bom, que tem de se entusiasmar com tudo o que os outros fazem ou pensam. Pelo contrário. Tolerar é saber que em uma sociedade plural, aberta, sempre temos de conviver com coisas de que não gostamos totalmente ou de que gostamos muito pouco. Em nome dessa convivência plural, temos de tolerar; naturalmente, sempre dentro dos parâmetros da lei, dentro daquilo que é admissível, porque existem coisas intoleráveis, como a violência, a exploração. Dentro daquilo que é aceitável, jurídica e humanamente falando, existe uma grande diversidade de opções religiosas, eróticas, culturais, e temos de nos conscientizar de que temos de conviver com coisas das quais não gostamos.


No caso específico da sala de aula, o fenômeno migratório requer adaptações para incluir essas crianças, inclusive em termos de didática. A escola européia em geral, e aquela espanhola em particular, está pronta para esse desafio?

Isso varia muito de país a país, pois a realidade européia é multiforme. Infelizmente, a Espanha é um dos países que menos investe em educação, que menos investe em cada aluno. Temos uma escola pública bem deficiente. Existem alguns paradoxos, pois a escola privada funciona bem, mas recebe fundos públicos, e é muito difícil que aceitem alunos vindos de outros países, com problemas lingüísticos ou com problemas de outros tipos. Assim, a escola pública fica sobrecarregada, inchada com todos esses casos especiais, para os quais não tem formação suficiente, preparação suficiente, o que se torna um problema.


O senhor é um dos poucos filósofos que se ocupa da filosofia da educação. Por que esse desinteresse por uma temática tão crucial?

Eu, francamente, nunca consegui entender essa atitude por parte dos filósofos. A filosofia sempre se ocupou de educação. Platão, na República, já insistia nesse tema. Na época moderna houve grandes filósofos que trataram dessa temática, como Locke e Rousseau. Mas, não sei por que motivo, nos últimos 50 anos se torna cada vez mais difícil encontrar pessoas interessadas no assunto, justamente numa época em que a educação se tornou um tema particularmente importante.


União, Progresso e Democracia é o nome do novo partido que o senhor está fundando. Que espaço será dedicado à educação?

Certamente, a educação pública e laica é um dos pilares do partido. Queremos promover todo o potencial de uma educação pública e laica de primeira qualidade para os nossos estudantes. Esse é um tema que nos preocupa e que já foi incluído no nosso manifesto. Por  meio dele, buscaremos tratar dos problemas concretos atuais da educação na Espanha.


PARTIDO PELA DEMOCRACIA

Fundado em 7 de setembro, o Partido União, Progresso e Democracia reúne líderes bascos contrários à ETA e intelectuais como Savater, Mikel Buesa e Carlos Martínez Gorriarán. O partido é presidido por Rosa Díez, ex-membro do Partido Socialista Trabalhador Espanhol (PSOE).

Autor

Fernando Savater


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