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Entre dois fogos

"Não acredito que muitas mais gerações de pais sobrevivam ao inferno que ajudaram a criar". Leia aqui mais um texto do educador português José Pacheco

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



Com o decorrer da idade, vou ficando mais distraído. Fui com o meu neto Marcos a um supermercado, em plena febre consumista de Setembro. E não me perdoarei.



Deixei-me ficar, observando. As borrachas e canetas de cheiro, arrancadas dos estojos, jaziam nas estantes, ou espalhadas pelo chão, algumas esmagadas por sucessivas cargas de pequenos bárbaros, de quem escutava veementes exigências:




– Não quero essa porcaria! Quero uma mochila “Dream”! Ou, então, uma “Adidas”!




E a mamã devolveu à estante o pacote rejeitado, e danificado pela fúria do pimpolho.




– Ó Vitinho, olha esta, aqui! É mais bonita, não achas? E é mais barata. Olha que a mamã não é rica!…




– Só quero aquela lancheira, a do Mickey! Já disse!

– ripostou o catraio, enquanto arremessava uma Troley, que, certeira, embateu no lote e projectou as restantes lancheiras pelo espaço em redor. E já o pimpolho se atirava, a pés juntos, para cima de uma cadeira em exposição, rasgando o pano de alto a baixo.



– Deixa lá! – diz a progenitora para o preocupado pai do pimpolho – Se rasgou, rasgou! Que é que se pode fazer? Não é?…




Penduradas nas prateleiras, criancinhas remexiam os stoks, sob o olhar embevecido dos seus progenitores. Derrubavam caixas, pisavam cadernos, rasgavam embalagens.



Tive dose dupla de Vitinho, pois reencontrei-o no restaurante do centro comercial.



Pelos olhares de incómodo dos clientes, presumo que a cena já ia a meio, mas ainda fui a tempo de presenciar o final. Com os pés em cima de uma cadeira, o Vitinho ensaiou um salto acrobático para uma outra cadeira da mesa ao lado. Falhou a tentativa, agarrou-se à toalha e foi um mar de vidros pelo chão.




– Vitinho, vem já aqui! Vês o que fizeste?




O Vitinho respondeu à querida mamã com um tiro de pistola de plástico. Mas errou a pontaria e o projéctil aterrou na sopa do cliente da mesa ao lado.




– Ó Vitinho, não vês que estás a incomodar estes senhores?




– Cala-te! Não sejas parva!

– retorquiu o catraio. E, aí, entrou em cena um pai assanhado:



– Vitinho, vem já para a mesa! Ouviste? Estás a ouvir? Tu queres que eu me levante? Queres? Queres? Olha que eu levanto-me! Eu levanto-me mesmo, ouviste? Já estou a perder a paciência! Já para a mesa, vá! Estás a ouvir? Queres levar? Olha que levas! Estou quase a levantar-me. Olha que, se eu me levanto!… Olha que eu vou-te bater! Olha que vou mesmo! Já me estou a enervar! Tu não ouves? Vem sentar-te!




Depois, com mais jeitinho, mas culminando num apelo:



– Vá, não sejas feio. Vem sentar-te, que eu mando vir um gelado dos que tu gostas. Olha o senhor! Cuidado! Desvia-te!




O empregado de mesa ainda rodopiou, furtou-se à carga do Vitinho, mas a bandeja voou, e a travessa das carnes acabou em cacos espalhados no chão do restaurante.




– Estás a ver? Não te disse? Vem sentar-te agora. Vá! Pede desculpa ao senhor. E já!




– Vai à merda!

– foi a resposta que o extremoso pai recebeu. Reagiu com um sorriso que mais pareceu um esgar de dor. Em redor, os clientes abanavam as cabeças, ciciavam repúdio.



Sinto um travo amargo ao redigir este tipo de descrições. Faço-o por partilhar o princípio da Clarice:
“escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa, mas há gente que está querendo desabrochar de um modo ou de outro”.

Não acredito que muitas mais gerações de pais sobrevivam ao inferno que ajudaram a criar. Quem vive em desajuste entre intenção e gesto, transforma-se em sombra. Se uma criança for educada na verdade, se pressentir a verdade nos seus educadores, crescerá em verdade e de verdade. Os seus pais devem levá-las a aprender a resistir a frustrações. A criança precisa ser contrariada, mas também precisa errar.



Nós já sabemos que a educação de uma criança começa vinte anos antes de ela nascer. Também já nos habituámos à lengalenga da “crise das instituições”. É bem verdade que a Família já não é o que era, que a Escola está em decomposição acelerada, que a moral vigente é caduca e assenta numa trágica inversão de valores. Pois! E depois?… Iremos passar o resto das nossas vidas a carpir desgostos, ou tentando extirpar a infelicidade em todos os lugares onde se acoite?



Já conhecemos a escolar arenga do “já não é como antigamente, já não há respeito”. As famílias argumentam que a culpa é da perda de autoridade dos professores. E a culpa morre solteira.



Há cursos para tudo: para engenheiro, para canalizador, para médico, para astronauta. Só não há curso para ser pai e mãe, que é a missão mais provável que um ser humano pode desempenhar.






As nossas crianças sobrevivem entre dois fogos, numa guerra de trincheiras: de um lado, pais “modernos”; do outro, professores que se demitem de o ser. A estes dedicarei o próximo escrito.




Leia também os outros textos publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:




Mais uma história da Ana





La porte-plume redevient oiseau





Redundâncias





Educar da cidadania





O pai do Watson





O Senhor Carlos





A divisão das orações





Bem pelo contrário!…





A caixinha dos segredos





O padre, o poeta e a professora de francês





Para os filhos dos filhos dos nossos filhos





Tempus fugit




Autor

Redação revista Educação


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