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Entrevistas

Educar para a vida

Finalidade da educação deve ser propiciar o pleno desenvolvimento de todos os indivíduos, diz o educador espanhol Antoni Zabala, para quem a escola é lugar de utopias e não para se consagrar práticas sociais

Publicado em 10/09/2011

por Constança Guimarães


Antoni Zabala

Defensor incondicional de uma educação que privilegie a formação para a vida e não para a o ingresso na universidade, o espanhol Antoni Zabala volta ao Brasil em abril para participar de um congresso internacional de educação que acontece nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.

Formado em Filosofia e Ciências da Educação pela Universidade de Barcelona, Zabala, hoje diretor do Campus Virtual de Educação da mesma instituição, foi um dos artífices da reforma do ensino em seu país após a queda do general Francisco Franco. Autor de Enfoque Globalizador e Pensamento Complexo (Artmed), luta por mudanças de rumo na educação  consonantes com os novos tempos do conhecimento, porém apenas se feitas com planejamento e considerando as realidades locais. Na entrevista a seguir, concedida via e-mail a Rubem Barros, reitera que a escola deve manter o espaço para a utopia.


O senhor tem sido um crítico da Educação Básica voltada ao ensino universitário. Pelo que conhece do sistema educacional brasileiro, o que é preciso fazer para mudá-lo?

O ensino voltado à universidade é o resultado de uma escola pensada para a minoria que pode vir a ser universitária. Finalmente conseguimos entender que o sistema educativo deve ser para todos, e se caminha para a sua universalização. É imprescindível modificar a interpretação de sua função social. Em última instância, o objetivo é a formação de todos, entre eles, evidentemente, também os universitários. Mas a finalidade última não é a universidade, e sim o pleno desenvolvimento dos indivíduos e suas capacidades cognitivas, motoras, de equilíbrio e autonomia pessoal e de inserção social. Definida essa direção, é necessário estabelecer os meios para que cada aluno encontre o caminho adequado a seus interesses e capacidades.

As mudanças que essa interpretação da educação exigem do ensino são enormes. Não se consegue mudar de um modelo propedêutico e seletivo a outro de formação integral apenas com a elaboração de propostas curriculares. Isso exige um processo que, por suas dimensões, deve ser dilatado no tempo. Deve-se ter em conta que a peça fundamental para a mudança é o professor. E, para que ele se envolva, é preciso que a sociedade o proveja de meios e estímulos para que um desafio dessa dimensão seja assumido com êxito.


Quais as maiores lições extraídas no processo de transformação do sistema de ensino espanhol pós-Franco?

Sem dúvida que as mudanças em profundidade só são possíveis se planejadas em função dos meios disponíveis. É fácil determinar objetivos admiráveis e desfilar boas intenções, mas isso pode ser desmobilizador e frustrante se não vier acompanhado de medidas rigorosas. Isso implica realizar um diagnóstico real da situação vigente e uma análise profunda da distância entre essa realidade e o que se propõe. Essa análise determinará quais medidas adotar e, em função dos meios disponíveis, o tempo necessário para as mudanças.

Na Espanha, elaborou-se um desenho curricular apropriado às demandas internacionais acerca da finalidade do ensino. Tínhamos um currículo baseado em competências, para a vida, e uma fundamentação pedagógica de notável solidez científica. Fez-se o que era relativamente fácil – os documentos – porém se abordou o seu desenvolvimento de forma ingênua, com a crença de que só a definição dessas intenções bastaria para levá-las a cabo. Um processo de mudanças de tal envergadura exige um planejamento de longo prazo, que contemple pelo menos uma geração. 


Que país tem, hoje, o sistema educacional que mais o atrai? Por quê?

Neste momento, o país que pode servir de referência, guardadas suas particularidades, é a Finlândia. Em pouco tempo – não mais do que duas décadas – conseguiu resultados invejáveis: é o primeiro entre mais de 50 países em leitura e em matemática, segundo o Pisa. Mas o mais atraente foi a decisão de apostar na educação, com medidas negociadas por todos os partidos políticos, entre as quais se destacam as apostas no ensino por competências, numa metodologia para atender à diversidade e, o que é mais importante, na formação extensa do professorado (a licenciatura, para os professores do ensino médio, tem mais de 2.500 horas de formação em habilidades pedagógicas).


Como conciliar as necessidades de formação profissional para a maioria da população e de grupos de excelência em determinadas áreas?

Alguns assessores do Banco Mundial crêem que os países em desenvolvimento, visto que o ensino é muito caro, devem dirigir seus investimentos aos grupos sociais que podem liderar o país. Creio que essa postura é eticamente inaceitável. Devemos buscar, e isso é possível, fórmulas que permitam formar os profissionais que sejam imprescindíveis às atividades necessárias para que um país seja o mais competitivo possível, assim como uma formação de qualidade para os grupos dirigentes, e que permita que todos sejam cidadãos comprometidos com a transformação da sociedade. Para que uma sociedade funcione, são necessários bons profissionais, mas sobretudo que eles sejam também bons cidadãos.


O Brasil e muitos outros países vivem uma crise dos espaços públicos, do exercício da cidadania. A escola pode ajudar a revertê-la? Como?

A escola segue sendo a instituição mais adequada para iniciar a população no exercício de uma cidadania comprometida. Cada vez mais, ela chega a todos os núcleos populacionais, de forma mais ou menos organizada, e – o mais importante – dispõe de muitos profissionais que escolheram exercer de forma beligerante uma ação decidida visando a uma sociedade melhor. Isso permite identificar a escola como o meio fundamental de que dispõe a sociedade para formar o aluno nos princípios básicos de participação, colaboração, sentido crítico e espírito democrático.

O como consegui-lo está relacionado a alguns dos conceitos a que já me referi: formação para todos e em competências para a vida e, para isso, o uso de metodologias condizentes com o conhecimento científico de que dispomos sobre os processos de aprendizagem. Metodologias que, de forma sucinta, possam dar conta de traduzir para o aluno o que é a atividade do professor: modelos cooperativos, assembléias de classe, co-gestão da aula, projetos, investigação do meio, simulações, análise de casos etc. Formas de ensinar mais atentas àquilo que os alunos são capazes de aprender do que àquilo que somos capazes de ensinar.


O senhor não teme que os cursos de reciclagem, ao invés de serem um meio para o professor repensar sua atuação, sejam apenas meios para se criar apêndices de informação?

Infelizmente, os modelos tradicionais e obsoletos de ensino se reproduzem, de forma incoerente, na formação do professorado. Pretende-se uma formação para que o professor seja competente em aula, mas as estratégias utilizadas são adequadas apenas para um conhecimento teórico e descontextualizado.

A formação do professorado deve passar inexoravelmente pela reflexão sobre a prática, a partir do uso de referenciais teóricos sólidos, porém sempre acompanhados de modelos de intervenção reais, ou seja, de técnicas, estratégias e métodos didáticos. É um conjunto de habilidades profissionais que, uma vez conhecidas e fundamentadas, só serão dominadas mediante um trabalho sistemático de aplicação em aula, com apoio de especialistas nessas técnicas.


Depois de muito tempo ausente, o ensino de filosofia está voltando ao ensino médio no Brasil. O senhor crê que isso pode ajudar os alunos a ter visões de conjunto e a entender melhor o universo do pensamento complexo?

É impossível participar ativamente desta sociedade se não se dominam estratégias de análise e de ação na e para a complexidade. O ensino que herdamos compartimentou o conhecimento em áreas cada vez mais alijadas da finalidade para as quais foram criadas: de serem meios para a compreensão de algum aspecto da realidade. Essa separação em saberes estanques teve uma resposta perversa na escola ao criar um ensino baseado na aprendizagem das disciplinas como um fim em si mesmo. Quer dizer, a matemática pela matemática, a língua pela língua, a física pela física etc. A partir dessa ótica, o importante não é ser competente, e sim dispor de um "conhecimento disciplinar".

Para se opor a isso é imprescindível não uma nova disciplina – ainda que seja uma disciplina totalizadora como a filosofia – mas algo capaz de integrar os princípios e métodos filosóficos em qualquer conteúdo de aprendizagem. Não tem sentido aprender nada que o aprendiz não saiba situar como meio para a compreensão de um mundo que sempre é complexo. Não serve para nada um conhecimento para aquele que é incapaz de fazer perguntas relevantes.


Até que ponto a escola tem de refletir as práticas e valores sociais e até que ponto deve buscar práticas e valores próprios?

 
Para que possa educar, a escola deve estabelecer o tipo de cidadão e cidadania que a sociedade necessita para ser cada vez melhor. Isso comporta uma definição de valores que muitas vezes não apenas não coincidem com os valores sociais que imperam como a eles se opõem. A educação só tem sentido quando está a serviço de ideais. Quanto mais distantes estejam esses ideais da realidade, maiores devem ser os meios de que tem de lançar mão a escola. Há que se ter em conta que não há educação sem utopias. Utopias que nunca serão alcançadas, mas sem as quais é impossível identificar o caminho que o processo educativo deve percorrer.

Autor

Constança Guimarães


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