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Entrevistas

Educar em meio à guerra

Diretor da ONG mexicana Investigação e Educação Popular Autogestiva defende que é necessário discutir a violência e ensinar as crianças a conviver com ela

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação


A Investigação e Educação Popular Autogestiva é uma entidade mexicana que trabalha diretamente com governos e diferentes instâncias sociais para assegurar os direitos da população indígena e pobre localizada na zona sudeste do país. Sediada em Yucatán, a organização também tem projetos voltados para a primeira infância. Em entrevista a seguir, concedida a Rubem Barros , Guillermo Angulo, diretor do órgão e antropólogo, conta como se dá o trabalho com as crianças e jovens que estão ligados, direta ou indiretamente, ao problema do narcotráfico. Para ele, ao evidenciar a existência da violência, a escola pode desempenhar um papel fundamental no sentido de sanar o medo na sociedade. “Muitas vezes, a violência é ocultada ou maquiada, porque há a ideia de que as crianças não devem saber sobre ela”, afirma. Formado em antropologia, o mexicano acredita que a escola deve gerar ações, para além da aprendizagem, que ofereçam alternativas aos alunos relacionadas com a colaboração. O diretor esteve em São Paulo por conta do Seminário Internacional de Educação Integral, realizado pela Fundação Itaú Social e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Até que ponto a violência tem impedido o funcionamento das escolas nas zonas afetadas pelo tráfico de drogas?
Recentemente, a violência cresceu de maneira expressiva no país. Nos últimos cinco anos, mais de 30 mil pessoas morreram em função da violência relacionada ao narcotráfico, e desses 30 mil pelo menos mil são meninos e meninas pequenos. É possível que esse número seja maior. O fenômeno tem vários caminhos e situações, como a daquelas crianças que são vítimas do narcotráfico indiretamente. Seus pais, relacionados ou não com o narcotráfico, podem ser assassinados. Há também aqueles que diretamente são assassinados, porque os tiroteios e outras situações violentas ocorrem perto das escolas. Outro caso  preocupante é o dos adolescentes que abandonam as escolas e agora fazem parte dos cartéis de venda de drogas.

Isso ocorre mais no sul ou no norte do México?
No norte. Há dois grandes problemas: o da violência no norte e o da migração no sul. Dizemos que os adolescentes do sul não são cooptados pelo narcotráfico porque estão indo para os Estados Unidos, não permanecem ali.  

As escolas têm de passar muitos dias fechadas em função da violência?
Sim. No ano passado, em um dos estados no norte do país foi preciso fechá-las. Além disso, a situação está ficando mais preocupante pois estão começando a simular tiroteios nas escolas, para que os meninos e meninas saibam o que fazer nesses casos. Isso é muito dramático para essas crianças.

Algo como os treinamentos para terremotos no Japão?
Exatamente. Alguém grita: “Tiroteio! Todos no chão, não saia!”. A justificativa é que é melhor que se assustem com isso do que morram. Mas é claro que é muito traumático. Quanto menores são as crianças, maior é o medo delas do que pode acontecer. 

Como o Estado está presente nessas regiões? Sua ausência não sobrecarrega a missão das escolas?
O problema é que o tema do narcotráfico está relacionado com outros que têm a ver com pobreza, iniquidade, distribuição de renda. Muita gente foi afetada porque o Estado se absteve de implantar políticas sociais, pois a política econômica é vista como muito mais importante. Quando o tema do narcotráfico cresce, a resposta do Estado é o investimento no combate direto a ele: mais polícia, mais exército nas ruas. O que é lamentável, pois até agora o problema não foi solucionado. Todos os recursos que poderiam ter sido destinados à educação foram destinados à defesa. Ainda que o Estado mexicano diga que não se trata de uma guerra, é o que se vive. Sobretudo no norte do país, onde a situação é muito difícil em cidades como Ciudad Juarez e Monterrey.

O que as escolas podem fazer para atuar nessas regiões?
A educação escolar pode agir para sanar espiritualmente as pessoas que têm medo. Há cidades em que as crianças já não brincam nos parques porque creem que pode lhes acontecer algo, como serem raptadas ou feridas. Nas escolas, há controles no recreio. Há algum tempo, nem sequer havia recreio em algumas delas. O que podem fazer os professores e a educação? Gerar ações, para além das relacionadas à aprendizagem, que deem alternativas para que os jovens e as crianças reencontrem um sentido para a vida, não relacionado com a violência, e sim com a colaboração. Podem agir para que os alunos encontrem uma identidade, e para que saibam seu presente e seu futuro. Nesse sentido, o professor é um elemento fundamental, porque pode oferecer aos alunos e suas famílias ferramentas para curar as feridas que o medo gera. Isso também ajuda os próprios professores a curar a mesma ferida, pois eles vivem em uma tensão grande com o fogo cruzado. O papel dos docentes é muito importante, mas eles não estão preparados para isso, como também não estão para atender crianças com necessidades especiais e grupos com crianças de diferentes idades – as escolas mutisseriadas. Eles dizem que essas situações exigem muito trabalho.

Muitos educadores preferem ocultar o tema da violência a trabalhar suas representações. Qual sua ideia a respeito?
Em primeiro lugar, deve-se evidenciar que a violência existe. Muitas vezes ela é ocultada ou maquiada, porque há a ideia de que as crianças não devem saber sobre ela. Um exemplo foi o incêndio de uma creche no México em que 49 crianças morreram e outras ficaram feridas. Três meses após o ocorrido, fomos à escola, perguntamos aos professores sobre o incêndio e ninguém queria falar sobre o assunto. Mas os alunos tinham problemas de reprovação, muitos deles haviam perdido irmãos, vizinhos, amigos. Os professores diziam: “já passou”. A tendência do adulto é pensar que o esquecimento resolve as coisas. É uma visão de subestimação, como se a criança não entendesse e apagasse o acontecimento. Ao contrário, isso vai se alimentando, e acaba tendo de ser tirado fora de alguma maneira. O importante, em primeiro lugar, é trazer o tema à mesa; segundo, colocá-lo em dimensões em que as crianças possam trabalhar com o ocorrido. Quando trabalhamos nessa colônia, por exemplo, falar da morte e da perda com as crianças foi muito importante porque elas puderam se expressar. Encontramos desenhos impressionantes, como um de cruzes com fogo. Os alunos diziam que Deus provocou o incêndio porque queria levar as crianças. Todo o imaginário da criança está lá e se ele não se solta, isso permanece dentro deles. Temos de preparar os professores para  que trabalhem esses temas, o que fará com que eles deem à violência a dimensão correta, em vez de fazer simulações.

Se eles próprios não fazem as representações da violência, não permitiriam que as crianças o fizessem.
Claro, cada vez mais trocamos a liberdade pela segurança. Preferimos estar seguros e ficamos aqui; não saímos porque assim não nos vão fazer nada. Isso gera uma situação que, daqui a uns 20 anos, será terrível. Enlouqueceremos.

Podemos dizer que os adultos vão cada vez mais para uma direção de controle e não de liberdade?
Um exemplo: um médico do século 20 não saberia operar com raio laser ou
usar uma tomografia computadorizada. Mas s
e você trouxer um professor do começo do século passado a uma sala de aula na maioria das escolas, ele poderá dar aula perfeitamente. A pedagogia mudou, mas não mudou a atitude. As técnicas didáticas, o conceito pedagógico, o construtivismo piagetiano, as competências… os professores não os aplicam. Preferem controlar. Preferem ter os alunos calados, sentados. Isso acontece no primeiro ciclo do ensino fundamental. No segundo e no ensino médio, começa a haver os problemas porque o adolescente já confronta. Há muitos casos de enfrentamento entre jovens e professores. Na Argentina, a evasão escolar chega a quase 50%; no México, é de aproximadamente 25%. São índices altíssimos. Os adolescentes já têm ferramentas para dizer que não vão regressar à escola, porque sofrem violência, não gostam ou não aprendem. A diferença é que as crianças menores têm pouco espaço para a rebeldia. Essa tensão é uma das causas. Há vários estudos que mostram que não é apenas a pobreza e a necessidade de trabalhar que faz o adolescente deixar a escola, mas sim porque eles não encontram sentido na instituição. Nem eles, nem seus pais.

Vocês têm combatido a migração de jovens para os EUA. Já conseguiram revertê-la?  Aqueles que ficam são os de maior escolaridade?
A migração é um direito. Muitos têm migrado. A primeira questão não é satanizar esse fenômeno. Não podemos dizer que está errado ir para os EUA porque eles têm toda a razão. Os jovens não têm trabalho, não vão à escola. E há uma cultura que reza que quando o jovem vai para os EUA, vai se dar bem. O que fazemos é propor alternativas e ações para que ele fique. O trabalho que realizamos com os adolescentes começou muito pequeno, com grupos de teatro e dança. Utilizamos as técnicas artísticas para que eles retomem sua segurança, seu corpo, sua estima e sua identidade. A identidade nós buscamos através da apresentação de uma peça teatral, encenada pelos jovens, chamada Rabinal Achí . É uma peça pré-colombiana, uma das mais importantes dramaturgias maias, o que permite que o adolescente veja valor de algo vivo. Trabalhamos somente com jovens com menos de 18 anos que não estudam  e que tiveram a intenção de migrar, muitas vezes influenciados pelas famílias ou por ter antecedentes familiares de pessoas que partiram. No México, há um fenômeno que, seguramente, acontece aqui também. Não gosto do termo, mas são os “ninis” ( ni estudian, ni trabajan ). Depois que eles apresentaram a peça, disseram que queriam ajudar outros para que não passassem pelo que eles passaram. Dividiram-se, então, em equipes e foram visitar escolas pela região em que viviam. Após a encenação, trabalhavam com os alunos, questionando-os sobre suas preocupações e necessidades. Após a investigação, organizaram um documento e o apresentaram aos prefeitos dos municípios em que fizeram o trabalho e disseram: “nossos amigos disseram isso. É o que falta na comunidade. Como vocês vão ajudar?”. Começamos assim um processo de negociação. Isso foi em época de eleições, então tivemos de apresentar o tema novamente quando os prefeitos regressaram.

Estamos falando de um processo que durou quanto tempo?
Desde que começamos até a reunião com os prefeitos, passaram-se dois anos. A partir do segundo ano, mostramos ao governo a capacidade desses jovens e discutiu-se a possibilidade de oferta de bolsas de estudo, para que eles terminassem ao menos a etapa escolar que haviam abandonado. No momento seguinte, levantou-se a questão de como eles poderiam se sustentar, já que a preocupação econômica sempre existe. Buscamos a Fundação Ashoka, que oferece um programa a jovens empreendedores chamado “Avancemos”. Essa parceria cumpre uma função dupla, porque eles acabam promovendo a ideia entre outros jovens, que é nosso objetivo. Neste ano, estamos com uma parceria com a Fundação Kellog, que vai atender metade do Estado de Yucatán nesse mesmo sentido.

Autor

Redação revista Educação


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