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Toda vez que vai lecionar para uma das turmas de licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), o psicólogo Luciano Bedin da Costa recorre a uma ideia do filósofo alemão Friedrich Nietzsche para se preparar. “Na sala, gosto de pensar que estou diante de um ‘campo de forças’. Apesar de todas as regras e normas, das carteiras uma atrás da outra, imóveis, nada está parado. Eu, como professor, sou mais um ponto entre esses outros tantos pontos em movimento”, conta. Por mais curioso que possa parecer num mundo onde a regra é a superexposição a estímulos de toda ordem, num primeiro olhar a sala de aula ainda permanece como um local de relações baseadas num modelo secular, com pouco espaço para o pensamento criativo, para a expressão artística e para a brincadeira. “Com o decorrer do tempo, o espírito da seriedade vai se tornando maior. A criança, quando brinca, olha para o seu entorno, mas isso deixa de acontecer na medida em que nos tornamos mais velhos”, diz o professor, doutor em educação pela mesma instituição em que leciona.
Estimular a criatividade no cotidiano da sala de aula é um desafio quando nem o currículo nem a própria organização escolar são pensados neste sentido. Mesmo assim, é possível trabalhar de forma que o processo de criação caminhe em paralelo ao conteúdo das disciplinas – favorecendo não só o aprendizado, mas a busca por saídas diferentes.
“Há culturas que estimulam a criatividade, mas, de modo geral, a nossa mais reprime que estimula. Apesar disso, penso que estamos acordando para essa necessidade”, diz a pesquisadora Eunice Vaz Yoshiura, presidente do Centro Interuniverstário de Estudos da Criatividade (Ciec), ONG sediada em São Paulo que oferece cursos e grupos de estudo sobre o tema.
Embora a ideia geral acerca da criatividade seja bastante clara, circunscrever esse conceito ou tentar explicar como se dá o processo criativo exige trânsito por diversos campos do conhecimento. “A criatividade é um fenômeno complexo, envolve as neurociências, a psicologia, a filosofia, a estética, entre outras ciências. Mesmo assim, a criatividade é algo constitutivo, é um traço essencial do ser humano, todos somos criativos em diferentes graus. Desde bebês já somos capazes de simbolizar”, diz Eunice. O método com que ela trabalha, por exemplo, procura estimular tanto questões cognitivas quanto questões emocionais. “Você pode ensinar alguma coisa de cima para baixo, como uma verdade absoluta, assim como fazer o aluno descobrir por si próprio”, aponta.
Hemisférios
“A criatividade humana tem vínculos com as características de nosso cérebro”, explica o psiquiatra e escritor Mauro Maldonato, da Universidade de Basilicata, Itália. Do ponto de vista fisiológico, o cérebro humano opera em dois hemisférios: o esquerdo está ligado às funções lógico-simbólicas, como as estruturas e funções da linguagem, enquanto o hemisfério direito trabalha com as emoções e a criatividade. “A habilidade do cérebro de formar imagens mentais e recombiná-las prismaticamente em associações lógicas e fantásticas é o fundamento da criatividade, esfera psíquica em que elementos lúdicos se entrelaçam a processos lógicos, na ausência dos quais seria impossível dar qualquer resposta inovadora, lançar qualquer olhar insólito para a realidade ou mesmo extrair novos dados a partir de elementos aparentemente óbvios”, afirma. Para Maldonato, é possível criar contextos para estimular o desenvolvimento da criatividade, embora não exista uma regra a esse respeito. “Muitas evidências apontam para o fato de que a inteligência criativa não vai avante de maneira sistemática, mas aos saltos, por analogia e divergência, e não por meio de estratégias convergentes”, aponta.
Para chegar a essa conclusão, Maldonato recorre a casos conhecidos na história das ciências que ilustram a presença de um importante componente emocional mesmo nas “atividades cognitivas mais estruturadas”: o matemático alemão Karl Friedrich Gauss (1777-1855), criador das geometrias não euclidianas, declarou que a existência de uma geometria distinta da tradicional lhe foi revelada em um “verdadeiro clarão”. Já o químico Friedrich August Kekulé (1829-1896) contou que a fórmula da estrutura cíclica do benzeno, sobre a qual ele já trabalhava havia muitos anos, surgiu durante um curioso sonho em que uma serpente mordia a própria cauda.
Formação estética
Embora na prática escolar a criatividade esteja quase sempre associada às aulas de artes, esses exemplos célebres fortalecem a ideia dos pesquisadores do tema de que o processo criativo pode estar associado a disciplinas menos afeitas à expressão emocional. “Há uma tendência de pensar que a criação está ligada à bela forma, mas isso não é verdade. A criação não está ligada a um produto, ao guache numa folha de sulfite, mas sim a uma relação que se estabelece”, diz Luciano Bedin, da UFRGS. Para o psicólogo, a criatividade pode estar presente nos corredores da escola ou mesmo na “mais chata aula de gramática” e, novamente, ele recorre a Nietzsche para representar o ato criativo.
“Qualquer ser vivo tem o que ele chama de ‘vontade de potência’, essa capacidade de dar novos valores a si mesmo, mas para isso precisa de um meio”, diz.
Andréa Vieira Zanella, do departamento de pós-graduação em psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entende que a formação estética é fundamental para que os professores possam ser esse “meio” que possibilita o aparecimento do processo criativo em sala de aula, de maneira que essa condição esteja presente em todos os momentos do aprendizado. “O professor tem uma formação muito técnica, política e ética, mas não estética”, ressalta. Na opinião de Andréa, exercitar o contato com o diferente, com o lúdico e tentar “imaginar o inimaginável” é condição para proporcionar um ambiente criativo. “A atividade de produzir algo novo, ou mostrar uma nova faceta que cause admiração, estupor, é fundamental no campo da ciência”, diz. Andréa também enfatiza o que considera uma contradição: embora a escola, de modo geral, vá se fechando para a criatividade na medida em que os anos avançam, o mercado de trabalho tem demandado cada vez essa característica.
Em Santa Catarina, Andréa participa de um projeto de pesquisa que leva adolescentes de diferentes escolas públicas para circular pela cidade e entrar em contato com a arte urbana por meio do grafite e da fotografia. Dessa maneira, os alunos poderiam entrar em contato com esse “diferente”, sem as amarras que ela atribui a um cansativo contexto da escolarização. Mesmo assim, diz a professora, a arte por si não vai trazer respostas nem ser a solução final para as dificuldades. “Um problema da educação é quando pega algo como panaceia. A formação do professor é complexa e a dimensão estética é apenas mais uma delas”, afirma.
Para Mauro Maldonato, devido à sua função institucional e ao rígido sistema administrativo ao qual estão ligadas, as instituições escolares, em gênero, trabalham com um conhecimento “achatado” e voltado à formação de cidadãos previsíveis, no sentido contrário do mundo exterior. “Numa época de revoluções científicas, culturais, tecnológicas, enquanto tudo muda numa velocidade sem precedentes, a pretensão de um conhecimento básico nivelado e uniforme se transforma em um instrumento velho e imprestável. Para aguentar o desnorteio e o desarraigamento de um mundo em permanente mutação, os saberes básicos deveriam conter em si questionamentos de sentido, capacidade de aprendizado autônomo, possibilidades de autoeducacão”, declara.
Mediação
Na prática, para fazer com que a criatividade seja um elemento presente no dia a dia da sala de aula é necessária uma abordagem em duas frentes: em relação ao professor, que deve estar disposto a encontrar alternativas de ensino, e em relação ao aluno, que precisa estar sensível aos processos de criação. Bailarina de formação, Kathya Maria Ayres de Godoy, docente da pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp de São Paulo, acredita que a expressão artística favorece esse “estado de prontidão”, em que as partes envolvidas no processo educacional estão mais receptivas. “A arte é uma via de acesso. Não vou usar a dança para o aluno aprender matemática, mas as duas podem dialogar, provocar um outro raciocínio. A proposta não é ensinar balé, mas o que o corpo pode fazer”, diz.
Na opinião de Kathya, a linguagem da internet e as novas tecnologias estão provocando um outro entendimento de mundo para crianças e adolescentes: o pensamento e a resolução de problemas é mais ágil, mas o conhecimento é mais superficial. “Uma criança de 10 anos pensa de maneira muito diferente do que um professor de 30 ou 40 anos, ela compreende o mundo com outras habilidades”, compara. Além disso, o mundo é fortemente visual, o que também demanda uma nova abordagem na transmissão do conhecimento. “O mundo hoje é das pessoas criativas. O professor deve ser um propositor. Não trazer para a sala de aula nada pronto e acabado, mas sim mediar.”
Para Eunice Yoshiura, o computador traz novas possibilidades em relação à criatividade que nem sempre o professor está preparado para usar. “Há tanto estímulo do lado de fora e dentro da sala é um só falando. Para quem tem uma visão maior é muito cansativo ficar focalizado”, observa. Algumas experiências com a robótica educacional, por exemplo, em que o aluno é responsável por encontrar a solução de um problema de maneira criativa, têm contribuído para melhorar o processo de aprendizagem e mostram que é possível inserir um componente novo à sala de aula. “Por que não estudar a física não só do ponto de vista teórico, mas também fazendo experiências práticas? A aula deve estar conectada com algo mais vivo”, sugere Eunice. Resta saber em qual das hipóteses o pensamento abstrato pode ir mais longe.