NOTÍCIA
Seríamos todos “mefistofáusticos” em nossos debates interiores entre os prós e os contras?
Publicado em 29/04/2019
Uma das leis básicas da linguagem humana foi identificada por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) nos seguintes termos: “Toda palavra que proferimos desperta uma ideia contrária”.
Façamos justiça, portanto, dando o crédito ao grande escritor alemão e batizando essa formulação como Lei de Goethe.
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Se toda palavra evoca o seu antônimo, estamos sempre indo de lá para cá e de cá para lá, como a bolinha no jogo de pingue-pongue. É este o jogo da reflexão, da ciência, das discussões éticas, das lutas políticas, da educação.
Cada palavra provoca a outra palavra. Toda palavra tem a sua sombra. E por vezes a sombra ganha corpo, e o corpo anterior se transforma em sombra deste outro corpo que um dia já foi sombra.
A sombra desperta em nossa mente a ideia de luz. Luzes e sombras fazem parte do jogo da vida. Mesmo os panoramas mais sombrios despertam na consciência um ponto de luz. E a luz intensa, quente, do sol nos faz desejar um pouco de sombra.
A sombra é um ser flexível, como aparece num poema de Jorge de Lima, intitulado justamente “Minha sombra”. De manhã, a sombra sai de casa, seguindo os nossos passos. Ao meio-dia, a sombra fica reduzida a quase nada, mas resiste heroicamente sob os nossos pés. À medida que a tarde avança, a sombra se alonga e, depois, à noite, adquire vários formatos e possibilidades, de acordo com as luzes que encontra em seu caminho.
Quanto mais de perto conhecemos as sombras da educação, maior é o nosso anseio por um feixe de luz, uma iluminação, por uma pedagogia marcada pela lucidez.
Devemos manter a chama acesa, ou as próprias sombras perderão o seu contorno. Não percamos a sombra de vista. Conhecer os problemas é a única forma eficaz de ir em busca de soluções. E a vontade de solucionar faz enxergar melhor os problemas. Esta ideia óbvia se submete de novo à Lei de Goethe, e o óbvio nos faz pensar então no insólito, no invulgar, no inusitado.
Segundo a Lei de Goethe, o contrário não é propriamente inimigo. O sim remete ao não e o não reivindica a afirmação. A educação faz pensar na barbárie, e a barbárie desperta uma imensa nostalgia de cortesia, afabilidade, respeito mútuo, diálogo inteligente, leituras. Todas as grandes histórias aceitam o bem e o mal como seus protagonistas. O protagonista precisa do antagonista.
O possível está sempre combatendo o impossível e a curiosidade não se conforma com a negligência. O incrível provoca a credibilidade e a vitória tem pesadelos com o derrotismo. A falha aponta para o acerto e o medo traz a coragem pela mão. A porta fechada abre a janela. A janela aberta tranca a porta. Sim e não. Não e sim.
A casa está em contraste com a rua. E em contraste com a escola. Educação é sair de casa para o espaço escolar, onde encontramos os não familiares, os que pensam com outra cabeça, os contraditórios, os diversos, os que não nasceram na mesma maternidade, os que têm biografias diferentes.
A tensão semântica faz parte do jogo e será ele, contudo, a nos tranquilizar, talvez.
Confúcio, ao lado de todos os sábios, sabe trabalhar com os opostos. Aconselha ele: “Esqueça as injúrias, mas sempre se lembre dos benefícios recebidos”.
Ao saber se une o ignorar, e a nota zero (perfeita, redonda, insuperável) com um só traço vai para o extremo da nota dez. A ausência marca presença e a presença não raramente se ausenta. O que é raridade gostaria de ser comum, e o comum daria tudo para ser extraordinário. Tudo e nada começaram uma conversa que não tem fim, e o fim vive falando dos inícios.
Peço emprestado ao poeta Haroldo de Campos, sem vontade de devolver, o neologismo “mefistofáustico”, por ele criado para descrever a relação entre a tentação da tradução (representada por Mefistófeles, o personagem satânico medieval) e o anseio que o texto original teria de escapar aos seus próprios limites linguísticos (representado por Fausto, que irá vender sua alma ao demônio).
Neste nosso diferente contexto, a palavra “mefistofáustico” pode resumir a ideia de que os opostos, os contrários, vão ao encontro um do outro. Fazem um pacto. Um contracena com o outro. Tudo seria tédio se o tédio não chamasse para o campo da vida tudo o que há de deleite, alegria, surpresa e prazer.
Todos somos mefistofáusticos. Em nossas reflexões, em nossos debates interiores, os contrários se encontram, e entre prós e contras vamos tentando entender as luzes e as sombras, os dias e as noites, os gostos e desgostos.
O ser mefistofáustico é, ele próprio, exemplo vivo da Lei de Goethe. Une em si dois sentimentos e dois destinos, dois projetos. Une, de certo modo, sobrenatural e natural, eternidade e fugacidade, loucura e razão, religião e ciência, crueldade e amor.
Mefistofáusticos nós somos, quando escrevemos sobre educação, e vem à mente tudo aquilo que a nega. E quando estamos presos àquilo tudo que nega a educação, que desvaloriza o trabalho docente, que desacredita a capacidade de cada aluno aprender a aprender, algo em nós renova a esperança, a resistência, traz de novo imagens luminosas.
A Lei de Goethe é uma boa chave de interpretação para os contrastes e contraposições da realidade. Ou talvez não…
*Gabriel Perissé é professor da PUC-RS, escritor e palestrante www.perisse.com.br
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