NOTÍCIA
Ao tratar todos os estudantes como potenciais universitários, o país acabou desconsiderando a riqueza dos caminhos técnicos e a pluralidade de vocações que uma economia complexa exige
Por Erik Horner, diretor no Colégio Humboldt, São Paulo | Durante décadas, o ensino técnico brasileiro foi visto como uma alternativa menor, voltada à formação de mão de obra de baixa qualificação. A imagem de cursos ‘voltados à fábrica’ ainda ecoa em parte do imaginário nacional, alimentada por uma tradição que separa o saber intelectual do saber prático e, com isso, desvaloriza ambos. É uma herança profunda de nosso passado escravista, em que o trabalho manual foi associado à servidão e não à inteligência.
Essa visão distorcida ajuda a explicar por que o país, mesmo com potencial produtivo e tecnológico, convive com uma escassez crônica de profissionais qualificados nos setores industrial, comercial e agrícola.
A consequência é dupla: produtividade estagnada e mobilidade social bloqueada. O jovem que não segue para a universidade encontra um vazio formativo entre a escola e o trabalho. E aquele que chega à universidade, muitas vezes, não encontra nela o que o mercado e a sociedade precisam.
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Criamos uma narrativa de sucesso centrada no bacharelismo, como se o diploma universitário fosse a única via legítima de realização, e deixamos de investir na educação profissional como eixo estratégico do desenvolvimento nacional.
Essa negligência não é recente. Desde as reformas educacionais dos anos 1980, o Brasil concentrou esforços na ampliação do acesso ao ensino básico, mas sem construir percursos diferenciados de formação. Investimos em quantidade de anos escolares, não em diversidade de itinerários.
Ao tratar todos os estudantes como potenciais universitários, o país acabou desconsiderando a riqueza dos caminhos técnicos e a pluralidade de vocações que uma economia complexa exige.
Revalorizar o ensino técnico significa mais do que abrir vagas, significa reconstruir o significado social do trabalho (Foto: arquivo pessoal)
Nos países que mais avançaram na integração entre educação e economia o quadro é outro. A Alemanha, por exemplo, construiu seu modelo dual sobre uma ideia simples e poderosa: a prática é parte essencial do conhecimento.
Nesse sistema, o estudante é simultaneamente aluno e aprendiz, vinculado formalmente a uma empresa que o contrata, o acompanha e o remunera durante o período de formação. Ele não está à espera de inserção no mercado, pois já vive o trabalho como ambiente de aprendizagem. Alterna períodos na escola e na empresa, articulando teoria e prática em um mesmo processo formativo que envolve empregadores, instituições e Estado. Todos reconhecem que formar bem é uma responsabilidade compartilhada.
A diferença central não está apenas na estrutura curricular, mas na visão de mundo. Na Alemanha, a prática é nobre porque representa o domínio consciente de um ofício, o saber que produz valor. No Brasil, ao contrário, o trabalho manual continua sendo visto como etapa inferior, quando na verdade é nele que se sustenta a maior parte da economia real.
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Revalorizar o ensino técnico significa, portanto, mais do que abrir vagas, significa reconstruir o significado social do trabalho.
Os dados internacionais confirmam o potencial dessa transformação. Segundo o relatório Education at a Glance 2024, da OCDE, 44% dos alunos do ensino médio nos países-membros estão em programas vocacionais, muitos deles com experiências práticas em empresas. No Brasil essa proporção é de apenas 14%, ainda distante da média global.
Curiosamente, somos exceção positiva em um ponto: as mulheres já representam 56% das matrículas no ensino técnico, desafiando o estereótipo de que essas formações são predominantemente masculinas. O estudo mostra também que adultos recorrem cada vez mais ao ensino técnico como forma de requalificação, o que amplia seu alcance social e econômico.
Outra pesquisa recente, encomendada pelo Senac São Paulo ao Instituto Locomotiva, indica que 56% dos jovens brasileiros de 14 a 18 anos acreditam que um curso técnico os ajudaria muito a realizar seus sonhos de vida. Fica claro: há demanda social por uma educação que una propósito e empregabilidade, teoria e prática.
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O problema não é a falta de interesse dos jovens, mas a escassez de caminhos concretos que articulem esses elementos de forma consistente.
Essa percepção dos jovens deveria provocar uma reação imediata das escolas e das empresas. São elas que, juntas, podem transformar a aspiração em trajetória, desenhando itinerários técnicos conectados às dinâmicas reais do trabalho. Onde essa parceria se consolida, a educação profissional deixa de ser um remendo e passa a ser um projeto de futuro.
Nessa direção, experiências consolidadas de ensino profissionalizante mostram que é possível superar a falsa dicotomia entre formação geral e formação técnica. O Colégio Humboldt, por exemplo, atua há mais de 40 anos com cursos técnicos de Administração, Logística e TI em cooperação permanente com empresas, a maioria de origem alemã. O modelo dual que inspira essa trajetória reproduz a lógica do aluno-aprendiz: o estudante aprende em sala e no trabalho, inserido no cotidiano produtivo da organização que o forma.
Ao adotar o trabalho como princípio educativo, a formação técnica devolve sentido à relação entre estudo e produtividade. A escola deixa de ser um espaço isolado e passa a dialogar com o mundo real, sem subordinar-se a ele. A empresa, por sua vez, assume papel corresponsável na formação de competências, reconhecendo que investir em aprendizagem é investir em sustentabilidade econômica e social.
O futuro do Brasil depende de nossa capacidade de dar dignidade ao trabalho e inteligência à produção. Isso exige política pública, investimento e, sobretudo, mudança cultural. O país precisa deixar de medir conhecimento apenas por títulos universitários e reconhecer que a excelência técnica é também excelência intelectual. Só assim poderemos alinhar o desenvolvimento humano ao desenvolvimento econômico e fazer da educação profissional um verdadeiro projeto de nação.
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