NOTÍCIA

Formação docente

Autor

Ana Gabriela Nascimento

Publicado em 02/10/2025

Nísia Floresta e Florestan Fernandes, educação que não se acomoda

Os ecos no presente de educador e educadora que marcaram, inicialmente, os séculos 19 e 20

Em 2024, no Brasil, 12,5% dos homens com idade entre 15 e 29 anos não estavam ocupados, nem estudavam ou se qualificavam (grupo denominado como ‘’nem-nem’), enquanto quase o dobro de mulheres, 24,7%, viviam essa situação. No mesmo ano, 9% das mulheres indicaram afazeres domésticos ou cuidados com outras pessoas como justificativa para o abandono escolar — razão apontada por apenas 0,8% dos homens. Esses dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua sobre Educação e evidenciam que disparidades de gênero persistentes poderiam ser ainda piores sem o empenho de mulheres como uma educadora brasileira nascida há mais de 200 anos no Rio Grande do Norte, em Papari — município que hoje carrega o seu nome: Nísia Floresta.

Aos 27 anos, em 1838, já morando no Rio de Janeiro, Nísia fundou o Colégio Augusto, instituição com uma proposta pedagógica revolucionária para a época. Enquanto a Lei das Escolas de Primeiras Letras de 1827 estabelecia currículos segregados por gênero, o Colégio Augusto oferecia matemática além das quatro operações aritméticas básicas, ciências, latim, francês, italiano, inglês, geografia, história do Brasil e educação física, disciplinas até então reservadas aos garotos. Considerado imoral para a realidade da época, o Colégio funcionou por 17 anos, deixando sua marca na história.

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Mas as desigualdades entre homens e mulheres estão longe de ser as únicas a influenciar nas dinâmicas sociais brasileiras. A Pnad Contínua Educação de 2024 mostrou que a taxa de analfabetismo entre pessoas brancas acima de 15 anos era de 3,1% e mais que o dobro entre pessoas pretas e pardas: 6,9%. Mostrou também que dos 8,7 milhões de jovens de 14 a 29 anos que não completaram o ensino médio em 2024, 72,5% eram pretos ou pardos e 26,5% eram brancos. À questão racial, soma-se, ainda, o peso da condição socioeconômica da população: o principal motivo para jovens abandonarem ou nunca terem frequentado a escola é a ‘necessidade de trabalhar’, citada por 42% dos entrevistados.

Deise Aparecida Peralta, professora na Unesp: Nísia enfrentou uma campanha cruel da imprensa por causa do Colégio Augusto (Foto: arquivo pessoal)

Patrono da sociologia

Se hoje, ao analisar esses números, é possível concluir que eles refletem distorções estruturais a serem corrigidas, isso se deve ao enfrentamento proposto por educadores como Florestan Fernandes, nascido há pouco mais de 100 anos, na periferia da cidade de São Paulo. Considerado patrono da Sociologia brasileira pela Lei 11.325 de 2006, defendeu a escola pública, laica e gratuita como um direito fundamental, buscando apontar vícios do sistema educacional e transformá-los por meio de sua atuação política, ativista e acadêmica. Florestan participou da formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), promulgada em 1996 — legislação que representou um marco, instituindo, por exemplo, a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino básico.

Assim, relembrar a trajetória de Nísia Floresta e Florestan Fernandes é reconhecer, mesmo questões que se colocam como muito atuais vêm sendo semeadas por atores do passado recente ou distante, em um fluxo contínuo de contribuições. Pode ser que Nísia e Florestan não dimensionassem, em suas respectivas épocas, o tamanho de suas ações, mas as marcas que deixaram na história contam que transformações acontecem passo a passo, dia a dia. Em comum, ambos partiam da ideia radical de que a única educação que faz sentido é a de qualidade e que chega a todos.

Educar é intervir no que está dado

“Florestan tem uma origem que é a cara do Brasil. Filho de uma mãe solo, ele viveu em guetos, morou em cortiços e deixou a escola para ser engraxate, depois garçom. Pelo incentivo de professores que frequentavam o restaurante, voltou a estudar. Então, ele fez uma espécie de supletivo, ingressou no bacharelado em ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP) e seguiu estudando”, conta o cientista social e professor do Instituto Federal Fluminense Elson dos Santos Gomes Junior, cuja tese de doutorado trata O conservadorismo de classe na teoria social de Florestan Fernandes.

Já como professor de ensino superior, após concluir mestrado e doutorado na USP, Florestan não limitou sua atuação à academia. “Ele chega a entrar em litígio com o centro acadêmico porque acreditava que as lutas precisavam sair da universidade. Há relatos dele panfletando na porta do campus, convidando quem passava a entrar e assistir às suas aulas”, comenta Elson.

Esse comportamento sintetizava um dos pensamentos centrais do intelectual sobre a educação: as desigualdades sociais são o grande entrave a uma educação que visa o desenvolvimento humano integral e multifacetado. “Florestan é um autor que pensa em possibilidades. Então, ele propõe que a gente imagine uma sociedade onde todos sejam integrados, estudem em uma escola legal e sugere que a gente busque isso ativamente”, explica o pesquisador.

Para Florestan, ‘povo’ é sinônimo de população negra, o principal grupo afetado pela ‘modernização conservadora’ brasileira — processo que importa o aparato institucional moderno, mas nega seus benefícios à maioria, resultando em exclusão e abandono escolar. A educação, nesse contexto, é o meio para uma ‘segunda abolição’ em que todos, especialmente a população negra, possam experimentar a modernidade e a cidadania plenamente. 

“A educação antirracista do Florestan não é uma educação só para acabar com o preconceito, mas para acabar com a sociedade do preconceito”, explica o professor Elson.

A educação antirracista do Florestan Fernandes é para acabar com a sociedade do preconceito, diz Elson dos Santos Gomes Junior, do Instituto Federal Fluminense (Foto: arquivo pessoal)

Educar como insubordinação

Assim como a de Florestan, a luta de Nísia também é influenciada por acontecimentos do início de sua vida. Como era costume da época, ela casa-se aos 13 anos, mas, menos de um ano depois, retorna à casa dos pais insatisfeita. Por volta de 1828, mesmo sob protestos do primeiro marido, passa a viver com Manuel Augusto, com quem tem dois filhos. Aos 21 anos, inicia a carreira de escritora, publicando artigos sobre a condição da mulher em diferentes culturas no jornal Espelho das brasileiras, de Pernambuco, onde morou por um período. Em 1832, lança seu primeiro livro, Direitos das mulheres e injustiça dos homens, uma tradução que marca sua defesa da educação feminina. Após a morte do segundo marido, passa a trabalhar como professora e muda-se para o Rio de Janeiro.

Nísia Floresta acreditava que a emancipação das mulheres passava pelo acesso ao conhecimento, sobretudo o científico, e que não era possível disputar espaço na vida pública com a formação limitada oferecida às mulheres na época, centrada em tarefas domésticas. Filha de um advogado português e influenciada por ideias iluministas e feministas europeias, entendeu que era preciso reformular o ensino. Como não encontrou uma escola que oferecesse essa formação, fundou o Colégio Augusto, onde, por 17 anos, meninas estudavam ciências e matemática, em condições semelhantes às dos meninos. 

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“Nísia enfrentou uma campanha cruel da imprensa por causa do Colégio. Foi boicotada de várias formas, especialmente por ataques à sua moral e sexualidade — estratégia comum para desqualificar mulheres e que vemos até os dias de hoje. Como ela frequentava espaços públicos e artísticos, isso também era usado para questionar sua reputação. Nísia pagou um preço alto por desafiar o comportamento esperado de uma mulher em sua época”, explica a doutora e professora em educação matemática da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Deise Aparecida Peralta, que pesquisou a campanha difamatória contra Nísia no jornal O Mercantil, do Rio de Janeiro.

Apesar de fechado, a experiência do Colégio Augusto e o pensamento de Nísia Floresta demonstram sua atualidade o continuarem inspirando estudos em diversas áreas. É o caso da dissertação Nísia Floresta e a defesa do ensino de ciências e de matemática para meninas/mulheres (1831-1853): educação, matemática e a formação feminina no Brasil do século XIX, defendida este ano na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

“Nísia já via, no século 19, o conhecimento como instrumento de dominação. No livro Opúsculo humanitário, ela aponta que negar às mulheres os meios de se instruir era um erro funesto à civilização. Para ela, manter as mulheres na ignorância era uma forma de garantir sua subserviência”, explica a autora da dissertação, mestre e doutoranda pela UFMS, Thainá Araujo Bonfim.

“Nísia já via, no século 19, o conhecimento como instrumento de dominação”, pontua a doutorando pela UFMS Thainá Araujo Bonfim (Foto: arquivo pessoal)

Nísia Floresta e Florestan Fernandes, assim como Lélia Gonzalez e Darcy Ribeiro, por exemplo, ensinam que a ideia de caminhar das margens para o centro como objetivo final da educação não tem produzido nada de novo. 

“Nísia mostrou que a formação das mulheres não era para que chegassem ao centro, mas para que se politizassem e transformassem as margens onde viviam. Nesse sentido, a educação deveria ser uma ferramenta de resistência e transformação, não apenas um caminho para integrar um sistema desigual”, defende a professora Deise.

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