NOTÍCIA
Após iniciar a democratização da tecnologia com seu projeto que completa 10 anos, o Robótica com Sucata, a professora finalista do ‘Nobel da Educação’ divide seu tempo de consultora de políticas públicas com a defesa da valorização da formação e carreira docente
Sem grandes investimentos financeiros com alta tecnologia, sem grandes kits ‘mão na massa’ e ainda com ausência de materiais pedagógicos referenciais. Foi partindo dessa realidade que a então professora de tecnologias da rede pública municipal de São Paulo, Débora Garofalo, implantou seu projeto para estudantes do ensino fundamental e que este ano completa 10 anos, o Robótica com Sucata. Em 2019, o Global Teacher Prize — tido como o Nobel da Educação —, organizado pela Varkey Foundation, a reconheceu como um dos 10 melhores professores do mundo e também a eternizou como a primeira sul-americana a ir à final da premiação.
Sim, uma iniciativa com materiais recicláveis encontrados no bairro periférico de uma escola na zona sul da capital paulista lhe rendeu reconhecimento internacional. Hoje, sua metodologia se tornou política pública e ela é inspiração para professores e professoras. Após o reconhecimento Brasil afora, Débora atuou em programas de inovação com secretarias de Educação, buscando expandir sua proposta. Atualmente, é consultora educacional e de políticas públicas, além de ser referência em cultura maker. É escritora, palestrante e colunista na revista Educação desde 2021.
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Débora reconhece que na sua formação predominou a educação bancária, criticada por Paulo Freire.
“A gente vive depositando. Essa não é a educação que quero passar para a frente, mas, sim, a que envolva outros aspectos. Não quero as crianças apenas sentadas. A mão na massa é isso, é o envolvimento completo e colaborativo, e que inclui também o STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática).”
Júlia Alencar foi estudante de Débora no Robótica com Sucata. As famílias dos alunos, segundo ela, definiam as aulas como criativas, divertidas e educativas (Foto: arquivo pessoal)
Assim como relatos de diferentes docentes das mais distintas localidades que, quando tentam inovar, não são apoiados por boa parte da direção e também por alguns colegas docentes, o mesmo aconteceu com Débora na escola que implantou o Robótica com Sucata. “Fui massacrada no sentido de alguns colegas olharem e falarem: ‘o que você faz não é robótica, é artesanato’. Parecia que, a todo momento, eu tinha que provar que naquele processo havia automação. Porque para ser robótica é necessário ter automação e eu precisava explicar isso.”
Naquela época, determinados docentes definiam sua sala de aula como bagunçada por conta de os estudantes estarem no chão ou em pé em volta da mesa — isso também porque o laboratório não lhe oportunizava um maior uso do espaço. “Sobre a ideia de uma aula bagunceira, respondia: ‘não é. Isso chama-se modelo rotacional, faz parte da metodologia do ensino híbrido. Uma parte está de um lado e a outra colocando a mão na massa. Após determinado momento, os estudantes sabem que devem trocar; eles precisam transitar’. As crianças ficavam felizes ao fazerem, por exemplo, carrinho movido a balão de ar que realmente funcionava, que andava.”
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A escuta dos estudantes, uma vez que as próprias crianças colocaram para Débora o problema do lixo em sua comunidade, e a atuação no território, são outros marcos do projeto. Fazia parte de sua aula percorrer o bairro para recolher as sucatas. “Quando comecei, a diretora me proibiu de fazer aulas públicas com os estudantes com medo de tiroteio ou que acontecesse algo. Tive um grande trabalho de convencimento de que poderíamos, sim, fazer aula fora.”
O laboratório oficial para as suas aulas tinha notebooks e computadores, mas o espaço não era suficiente para atividades mão na massa. Débora queria acomodar os alunos de outra maneira e que o ambiente incentivasse a criatividade. Daí vieram as aulas de tecnologia no pátio da escola, ao ar livre. “O impacto do projeto veio quando a minha coordenadora me disse: ‘Nunca imaginei uma aula de tecnologia fora da sala de aula.’ Ela deve ter falado isso porque viu as crianças envolvidas fazendo a sua mão na massa. Quando fui para a rua era ainda mais difícil imaginar uma aula de tecnologia na rua.”
Júlia Alencar, hoje com 18 anos, foi aluna da professora Débora, tendo vivenciado o Robótica com Sucata. “Eu era pequena. As aulas eram legais. Gostava quando ela nos ajudava a fazer carrinhos com garrafas. Quando a professora ganhou o prêmio, nós, estudantes, ficamos felizes e orgulhosos. Sentimos que o reconhecimento foi mais do que merecido, porque sabíamos o quanto ela se dedicou, o quanto ensinava com carinho e, realmente, o quanto ela se importava com o nosso aprendizado. Foi um momento de alegria para todos.” Júlia também conta que as famílias dos estudantes elogiavam a abordagem pedagógica de Débora, a definindo como criativa, divertida e educativa.
Débora Garofalo tem feito formações docentes em eventos nacionais e internacionais (Foto: arquivo pessoal)
Um dos desafios de Débora no início de seu projeto — futuramente premiado — foi o de aprender mais sobre o conceito de robótica e maneiras de implantá-la. Ela recorda-se que, há 10 anos, havia falta de referencial pedagógico abordando o tema. Inclusive, hoje é autora de livros sobre a temática para estudantes e docentes. “Realmente, naquela época não havia literatura. A Débora chegou quando tudo isso aqui era mato”, reconhece a professora Fabiana Temponi (saiba mais ao fim da matéria).
Débora explica: “Quando os meus colegas começaram a me questionar, fui autodidata. Já tinha base, não estava crua, mas precisava de mais. Eu queria gozar a criatividade das crianças. Sempre fui contra o passo a passo e, até hoje, quem me pede, fico brava. Porque eu gosto dessa questão de investigar, de aprender, aguardar se dará certo ou não — o que é uma conclusão desse rico processo e que te permite testar, retestar, aprender, errar, fazer de novo”. O fato de ter trabalhado oito anos em banco, isso por volta de 2008, e cuja área já indicava a importância da programação, trouxe-lhe bagagem para, naquele momento, colocá-la em prática com o viés educacional.
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O chão da escola pública fez Débora compreender que havia dois caminhos. O primeiro, se lamentar, como muitos de seus colegas, por não ter as ferramentas necessárias. O kit enviado na época à escola, recorda-se, permitia trabalhar com cinco alunos, mas ela tinha 1.000 estudantes. Sem contar a decepção das crianças, como já ocorreu, relata, de ter de desmontar o projeto para a outra turma usar. “O material reciclável me possibilitou evitar esse percurso. Eu não precisava desmontar mais nada. Era das crianças.”
Claro que atuar profissionalmente em um ambiente que, muitas vezes, exige carga horária máxima, turno em mais de uma escola e desvalorização salarial é desgastante. Débora não busca romantizar a realidade. Tanto que é defensora da valorização de uma carreira docente que mude a realidade citada e vá além: “Enquanto gestão de política pública, temos de pensar numa jornada docente mais inteligente. São vários os pontos, entre eles, a troca entre professores [pequena formação continuada] na grade horária deles.”
O Robótica com Sucata levou Débora a palestrar na Universidade de Oxford, Inglaterra, e cujos professores ingleses lhe disseram que o caminho encontrado por ela, via sustentabilidade, era ouro. O mesmo reconhecimento ela teve na França e Argentina. “Mas no nosso país, principalmente na minha rede, não vi isso acontecendo. Isso mostra que temos uma longa jornada de valorizar melhor os nossos profissionais da educação. E essa é a Débora daqui para a frente: uma militante da educação, fazendo esse advocacy de que a gente precisa e a gente pode. Porque vi a educação sendo ressignificada.”
Mão na massa e com atividades transversais (Foto: arquivo pessoal)
Em 2019, logo após o prêmio, a professora recebeu uma carta da comunidade, escrita com todo o cuidado para não ter erro de português, passada por várias mãos.
“A carta falava muitas coisas, mas uma jamais saiu da minha cabeça. E dizia: ‘obrigada, professora, por compreender que na favela moram pessoas.’ Isso foi muito forte para mim e também me fez ter um olhar diferente para a tecnologia. Falamos tanto em tecnologia, mas ela só faz sentido para mim se puder, realmente, ser reverberada para a mudança. Esse projeto é um trabalho cultural. Às vezes, na educação, queremos processos imediatistas, mas não funciona assim.”
O projeto também olhou para o entorno da escola, uma vez que as sucatas eram recolhidas pelo bairro (Foto: arquivo pessoal)
A premiação no Global Teacher Prize tornou Débora inspiração para muitos professores e professoras que, inclusive, conversam com ela seja por meio das redes sociais ou palestras pelo Brasil. “Ela provou que é possível fazer educação de qualidade com criatividade, sensibilidade e foco no protagonismo estudantil. Antes do trabalho da professora Débora, eu já conhecia a proposta da cultura maker e da robótica, mas, confesso que, naquele momento, parecia algo distante da minha realidade, quase impossível de aplicar com os estudantes”, conta Bruno Ruivo, professor na Escola Estadual Lino Vieira Ruivo, localizada na zona rural de Ibiúna (SP).
A inspiração de Bruno se materializou de diferentes formas, por exemplo, na aula eletiva Robótica e Maker, para alunos do ensino médio. “Trabalhamos com materiais recicláveis e sustentáveis trazidos pelos próprios estudantes, desenvolvendo projetos que despertam o protagonismo juvenil. Um dos destaques foi a construção de uma lixeira inteligente”, revela Bruno, que estudou na instituição em que hoje leciona.
Inspirado no projeto de Débora, o professor Bruno Ruivo criou a eletiva Robótica e Maker, para alunos do ensino médio da rede pública de Ibiúna (SP) (Foto: arquivo pessoal)
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Fabiana Temponi, então professora de duas escolas particulares em Governador Valadares (MG), lembra que, quando jovem, incentivos para meninas em áreas de inovação eram quase nulos. Ela conheceu o projeto da Débora por meio de uma reportagem no Fantástico, momento em que fortaleceu o que, no fundo, sempre soube: as áreas do conhecimento não precisam ser divididas e meninos e meninas podem fazer de tudo. “Pensei: que ideia boa para trabalhar quando não se tem recurso — e que é a realidade da maioria das escolas do nosso país, infelizmente. Comecei a pesquisar e a trazer a proposta para minhas aulas de arte, fazendo interseções com a robótica. Deu certo. As crianças começaram a se interessar, inclusive as meninas.”
O primeiro projeto de Fabiana foi para a educação infantil, um misturador de cor com motor tirado de uma impressora da escola. “Iam descartar a impressora velha. Eu disse: não descartem. Vou usá-la para alguma coisa.”
Fabiana fez especialização em robótica educacional e hoje escreve material didático de robótica utilizando material reaproveitado. Ela continua acompanhando os trabalhos da professora Débora Garofalo.
“A minha ideia é democratizar a robótica, é levá-la a lugares sem acesso a tecnologias como internet e computador, mas onde é possível desmontar a sucata e transformá-la em outra coisa. A minha ideia é propagar o que a Débora começou.”
Aluna e filha da professora mineira Fabiana Temponi apresentando um sensor de nível de água, feito com sucata, na Mostra Nacional de Robótica, em 2023 (Foto: arquivo pessoal)
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