NOTÍCIA
Em escolas públicas de Portugal, o Centro Lúdico da Imagem Animada Anilupa oportuniza que estudantes e docentes realizem filmes durante o ano letivo – sim, é cinema para dentro do currículo
Oculta parcialmente pela vegetação, ao lado dos Jardins do Palácio de Cristal — um dos principais pontos turísticos do Porto, na região Norte de Portugal — e com vista para a foz do rio Douro, uma casa antiga abriga hoje a quarta sede de um projeto que completou 34 anos de atividades ininterruptas: o Centro Lúdico da Imagem Animada Anilupa. Durante esse período, cerca de 7 mil crianças, jovens e adultos participaram de oficinas de cinema de animação, das quais resultaram mais de 250 filmes — disponíveis em uma cinemateca digital de acesso gratuito para escolas e outras instituições de todo o mundo.
No momento, a casa não pode receber visitas porque o piso foi comprometido pela ação de cupins. Aguarda-se a atribuição de uma nova sede pela Câmara Municipal (que, em Portugal acumula as funções executivas de uma prefeitura). Enquanto as portas estavam abertas, cerca de mil visitantes por ano passaram por ali para conhecer exposições em torno da história do cinema e da animação.
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O Anilupa é o estúdio de cinema de animação da Associação de Ludotecas do Porto, criada em 1987, com a missão de ‘contribuir para o desenvolvimento das crianças, jovens e famílias na defesa e promoção dos seus direitos, numa vertente social, lúdica e comunitária’. Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS, equivalente às Organizações da Sociedade Civil no Brasil), a Associação foi criada pelo médico pediatra Virgilio Moreira (1925-2002). “Ele tinha uma frase que nos dizia sempre: brincar é o ofício da criança”, lembra Fernando Saraiva, coordenador do Anilupa. Moreira queria criar espaços onde as crianças pudessem se relacionar umas com as outras e desenvolver atividades culturais. “Portanto, se descobrirem a si próprias, terem a oportunidade de também descobrir a outra, e tudo isso em prol do seu bem-estar e do seu crescimento natural”, acrescenta Saraiva, que trabalha no Anilupa desde a sua criação.
“Esse aspecto da ludicidade toca em muitos pontos. Uma das coisas que nos interessou muito foram as atividades artísticas, que desenvolvem o ser humano, como a maneira de se comunicar. Não importa ser artista, o que interessa é desenvolver o potencial artístico de cada um”, explica Saraiva. A Associação apostou então no desenvolvimento de diversos projetos, e um deles foi o Anilupa. No final da década de 1980, houve no Porto uma série de experiências e de práticas ligadas ao cinema de animação. Um dos responsáveis por isso, o diretor e produtor Abi Feijó, iniciou práticas para envolver crianças e jovens na realização de filmes de animação, na Cooperativa Árvore.
Projeto ‘O desafio de Joana’, do Centro Lúdico da Imagem Animada Anilupa (Foto: divulgação/Anilupa)
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“Influenciados um bocadinho por essas práticas, quisemos fazer algo que fosse regular, porque as atividades que Feijó desenvolvia eram pontuais”, diz Saraiva. “Isso colocava algumas questões no início. Como fazer, afinal de contas, cinema de animação com crianças? Como envolver os grupos em vários passos? Como é que vamos pegar em grupos que não são profissionais de cinema e os vamos pôr a fazer cinema de animação? Realizar um filme pressupõe pensar naquilo que se quer comunicar, desenvolver, e depois passa pela construção de um argumento, pelo imaginar como é que vai ser um filme.”
Ao listar essas atividades, Fernando Saraiva quer destacar que um filme não surge na altura em que se está a filmar. Segundo ele, surge de debates, daquilo que os profissionais também chamam de storyboard, que é a planificação visual, e de toda uma componente artística. “O cinema de animação abarca muitas técnicas. Pode-se fazê-lo em desenho animado, em cinema de animação com recortes, em cinema de animação com marionetas, até com objetos que se pode animar.”
‘O tempo escondido’ (Foto: divulgação/Anilupa)
Ao longo dos seus 34 anos, o Anilupa tornou-se um estúdio de cinema de animação que tem como principal missão envolver pessoas que não são profissionais de cinema em atividades de cinema de animação. Para isso, trabalha com grupos organizados, que fazem trabalhos coletivos, de acordo com um longo processo de pesquisa, discussão e reflexão para chegar ao produto final, um filme.
No meio do percurso, o foco em trabalhar com não profissionais levou também ao envolvimento de adultos, que fazem parte de comunidades. Em algumas situações, os projetos são intergeracionais, com a participação simultânea de crianças, jovens e adultos (muitos dos quais, idosos). Inicialmente, o trabalho foi desenvolvido em torno das ludotecas que a Associação mantém em parceria com instituições como as Juntas de Freguesia (espécie de subprefeituras) e Câmaras Municipais da região Norte de Portugal. A partir dos anos 2000, o Anilupa chegou a escolas públicas.
“É na escola que estão também grupos organizados em que as pessoas podem desenvolver um trabalho regular”, afirma Saraiva. “Foi uma conquista poder colocar ali esse projeto. A escola tem várias disciplinas, mas não tem, por exemplo, cinema de animação.Tem atividades artísticas, porque um professor pode desenvolvê-las com os alunos, e isso está previsto no currículo. Mas quisemos fazer uma provocação ao propor as nossas atividades em contexto educativo. Não fazendo algo que decorre numa semana intensiva, e sim que pudesse ocorrer durante o ano letivo e se enquadrar também nas áreas curriculares.”
Sementes de mudança’ em processo (Foto: Fotos: divulgação/Anilupa)
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Saraiva acredita que, além de aprender a ler e a escrever, os alunos de ensino básico “têm de pensar, refletir sobre as coisas, sobre o meio físico e social etc.”. Em uma atividade de cinema de animação, “também se escreve, se pensa, se reflete, se desenvolvem atividades artísticas”. Muitas vezes, ele destaca, as pessoas “não são muito sensibilizadas” para outra oportunidade de aprendizado, “o desenvolvimento do raciocínio matemático intuitivo”.
“No cinema de animação, quando se está a filmar, estamos a dividir movimentos em várias partes e estamos a desenvolver o raciocínio também matemático de uma forma intuitiva. Não é dois mais dois são quatro, mas intuitivamente estamos a fazer operações de divisão.”
Um dos exemplos de viabilização do trabalho do Anilupa nas escolas é o programa Porto de Crianças, da Câmara Municipal da cidade, que “promove projetos criativos, inovadores e diferenciados do contexto escolar formal, reforçando os planos curriculares e a atividade letiva dos docentes”. Os professores podem se inscrever em diversas atividades, como filosofia, inteligência emocional, yoga, robótica e ciências experimentais. Uma delas, no campo da educação artística, é o cinema de animação. Durante todo o ano letivo, alunos e professores são envolvidos na realização de filmes. Outras Câmaras Municipais da região Norte oferecem modelos semelhantes de participação às escolas.
No momento, o Anilupa desenvolve duas oficinas em Lamego, cidade de 9 mil habitantes a 130 km de distância do Porto, promovidas pelo Teatro Ribeiro Conceição, no âmbito de sua programação cultural, com apoio da Câmara Municipal. Um filme será realizado por alunos da Escola Básica de Penude (Centro Escolar de Lamego-Sul), a partir de histórias de vida contadas por idosos do Centro Social Paroquial de Penude. “Vai haver uma parte do filme em que eles vão também participar, independentemente da idade que têm”, conta Saraiva. “O trabalho é outro, tendo em conta que algumas pessoas têm até uma situação vulnerável ao nível físico, mas isso não impede que também possam fazer a sua personagem, fazer o seu cenário, e possam também experimentar.”
O outro filme, resultado de experiências de animação em desenho através de um método chamado ‘metamorfose”’ (que explora a transição entre imagens), será realizado por alunos do 12º ano da Escola Secundária Latino Coelho. A estreia dos trabalhos já tem data: será em 20 de junho, no Teatro Ribeiro Conceição.
Para conhecer mais do Anilupa e ter acesso à Cinemateca Digital: https://www.anilupa.pt.
Fernando Saraiva, coordenador do Anilupa, trabalha ali desde a sua criação (Foto: divulgação/Anilupa)
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