É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
Publicado em 30/09/2022
"Ou nos enterram dentro do prazo máximo de 24 horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto”
Antares, pequena cidade do Rio Grande do Sul, que mal consta no mapa, serve de microcosmo para a realidade fantástica e absurda que pairava por essas bandas tupiniquins. O ano é o de 1963, com todos os seus temores. Na primeira parte da narrativa, as famílias mais tradicionais da cidade, os Campolargo e os Vacariano, digladiam-se pelos privilégios oligárquicos e, ironicamente, entram em embate, ao mesmo tempo e juntos, contra as novas ideias políticas que estavam surgindo – o fantasma do comunismo, crescente na classe operária de Antares, e que assombrava os privilégios das famílias rivais.
Na segunda parte, o realismo fantástico dá as caras. Uma greve geral sacode os pilares do confronto comezinho da burguesia em Antares e, à vista disso, uma paralisação total dos trabalhadores entra em curso. Para alargar o drama, neste mesmo dia, sete pessoas morrem; e insepultas esperam que providências sejam tomadas para seus corpos encontrarem o destino final. No entanto, como os coveiros também entram em greve, não havia como enterrar os mortos. Indignados com o descaso, à noite, os defuntos saem de seus caixões e, juntos, decidem voltar a Antares para reivindicar seu direito à sepultura e para denunciar a miséria fétida deles e a moral pútrida dos vivos e viventes.
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Os mortos-vivos convocam uma assembleia ao meio-dia de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, no coreto da praça, onde falariam todas as verdades engasgadas e sabidas sobre suas mortes, sobre os políticos desonestos, sobre as autoridades corruptas e sobre os moradores da cidade, vivos-mortos que distraídos não supunham a tragédia do ano e das décadas seguintes. Protegidos pela morte, sem temer represália ou castigo, os insepultos chacoalham a distração e o horror daquela cidade.
A denúncia na praça pública – espaço democrático – torna-se uma alegoria de um levante contra o desatino. O leitor encontra, na cidade tacanha e de valores corrompidos, absurdos maiores e mais apodrecidos do que o espanto de ver seus mortos indignados a acusar os malfeitos de um sistema político e social colonizado, degenerado e arraigado num primitivismo tosco fomentador de desvios e de corrupção.
A praça e a cidade, tomadas pelos cadáveres, tornam-se metonímias de um país insepulto.
—“Simples. Descemos juntos pela Rua Voluntários da Pátria ruma da Praça da República. Lá nos dispersaremos, cada qual poderá voltar à sua casa… Para isso teremos algumas horas. O essencial (prestem a maior atenção!) é que quando o sino da matriz começar a dar as doze badaladas do meio-dia, haja o que houver, todos devem encaminhar-se para o coreto da praça, sentar-se nos bancos em silêncio e ficar à minha espera.
— E que é que você vai fazer? – quer saber João Paz.
— Vou primeiro à minha casa buscar uns papéis importantes… Depois me dirigirei à residência do prefeito para lhe entregar um ultimato verbal… ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético… e moral, naturalmente.”
Imaginemos, no final do ano da graça de 2022, se nossos quase 700 mil mortos acometidos pela covid, dessepultos, resolvessem denunciar suas agruras, suas dores, seus sofrimentos, seus abandonos, suas crenças e o nosso atraso em dar conta da tragédia avassaladora anunciada que poderia ser, em números, evitada. Afinal, somos 3% da população mundial e aproximadamente 10% dos mortos pela covid.
Apilhados nas ruas e nas redes sociais, vociferariam suas verdades, transformando o país em um imenso coreto sombrio. À beira da floresta amazônica, revelariam a dor da asfixia pela falta de oxigênio medicinal em Manaus e a indignação do enterro em vala comum, sem direito a velório. Revoltados se voltariam contra aqueles que incentivavam aglomerações em tempos de novas e mortais cepas e contra os que se opunham ao uso de máscaras nas ruas e nos locais públicos. Constrangidos, ver-se-iam mortos acreditando neles próprios e em quem os convenceu de que a covid era apenas mais uma das gripezinhas inocentes que assolam nossos trópicos ensolarados e imunes.
Ouviriam, tardiamente, o regente do coreto nacional dizer-se arrependido por ter, nas palavras dele, “aloprado” na pandemia ao alardear que “não era coveiro” diante do aumento vertiginoso de mortos e, irônico, responder a pedidos de compra de vacina “só se for na casa da tua mãe”.
Haveria também entre os mortos as mesmas contendas que há entre os vivos – uma disputa absurda pela verdade particular e pela violência da interpretação. De um lado, haveria mortos culpando-se pelo uso de remédios sem comprovação de sua eficácia contra a covid, e outros lamentando a fatalidade – apesar de continuarem em morte a defender a eficácia da cloroquina e similares. E, entre eles, haveria quem batesse no peito um “mea-culpa” por cair no conto mais antigo da humanidade e aceitar de pronto o que a Europa já refutava com sabedoria. E, por fim, haveria o engasgo da dor da perda que nem um morto-livre seria capaz de dizer.
Levantados do chão, em insurreição, gritariam contra o atraso na compra de imunizantes, contra a recusa em aceitar a vacina chinesa em bom tempo; lamentariam a propagação de fake news e a crença em muitas delas. Colocariam os dedos mortos e em riste no nariz dos vivos e diriam, como os cadáveres falantes de Antares: “cada um de nós tem nas suas mais remotas cavernas interiores um troglodita adormecido que, submetido a um certo tipo de estímulo, vem rapidamente à tona de nosso ser e se transforma num déspota totalitário capaz de todas as bestialidades”. E nunca faltará um falso humanista para inventar uma teoria filosófica com o objetivo de coonestar todas as monstruosidades cometidas pelo “homem das cavernas”. (…)