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Final de semestre, época de fechar as médias finais. Na universidade onde trabalho, o aluno precisa obter média mínima semestral 4,0 para ter o direito de realizar o exame final. Uma das alunas obteve 3,9. No dia seguinte à divulgação dos resultados, recebi uma mensagem por correio eletrônico. Era a referida aluna suplicando pela oportunidade de fazer o exame. Eu abrira a mensagem em casa, exatamente no momento em que meu filho, na época com nove anos, acabara de acordar. Ele sentou ao meu lado e fuçou a tela do computador: “Ah, pai, que maldade, por que você não dá uma chance? O que é um décimo?”.
Antes de responder, o repreendi por estar invadindo minha privacidade. Assim, ganhei tempo para construir minha argumentação. Qual a real diferença entre 3,9 e 4,0 ou entre 4,9 e 5,0? Confiamos tanto assim em nossos instrumentos avaliativos? Uma aluna que obteve 4,9 deveria ser aprovada? Não caberia, então, aprovar um aluno com 4,8? E a que obteve 5,0, está mais habilitada a prosseguir adiante do que a que obteve 4,9? Este conflito ocorre pois ao final de cada semestre e/ou ano somos obrigados a criar duas
categorias de alunos: os aprovados e os
reprovados. Distorções são inevitáveis. A propósito, depois de uma longa conversa com meu filho a respeito da privacidade, permiti que a aluna em questão realizasse o exame final. Infelizmente, o desempenho dela no exame final foi insatisfatório e ela foi reprovada.
Alguns meses depois daquele episódio, durante o inverno curitibano, fui acometido por febre alta, associada a tosse e dores no corpo. No pronto-socorro, o plantonista suspeitou que eu estivesse com gripe A. Meu sangue foi coletado e enviado para análise. Dias depois, a suspeita foi descartada. A partir de um único exame laboratorial, o médico concluiu que eu não contraíra gripe A. Nem sempre é simples assim, principalmente quando a doença não é categórica como a gripe, mas dimensional. As doenças categóricas são aquelas nas quais a separação dos pacientes em portadores e não portadores é feita com mais segurança. Isto é possível quando há uma característica, chamada de marcador da doença, que permite esta identificação. O marcador pode ser a presença de determinado anticorpo no sangue ou mesmo um sinal ou sintoma apresentado pelo paciente.
Em relação às doenças dimensionais, que é o caso da grande maioria dos transtornos associados às dificuldades de aprendizagem, a questão é mais complexa. Não há uma medida objetiva, definitiva, um marcador, que permita a separação entre portadores e não portadores do transtorno. Isso vale para a dislexia, para o TDAH, para o espectro autista e para muitas outras condições que afetam a aprendizagem. Quando se realiza um diagnóstico, aspectos multidimensionais relacionados à cognição, às emoções e à motricidade são reduzidos a uma classificação dicotômica, portador ou não portador.
O diagnóstico exige, portanto, a categorização. Consequentemente, por melhor que os critérios sejam estabelecidos pelos manuais de diagnóstico, os limites são sempre contestados e o corte para definir quem é portador de um determinado transtorno sempre trará um grau de incerteza. Incerteza que está presente no relato de um experiente psiquiatra que ouvi recentemente: “quanto mais conheço meus pacientes, mais dificuldade eu tenho para enquadrá-los em uma categoria nosológica”. Afinal, devemos concordar que enquadrar o aluno com dificuldades de aprendizagem em uma categoria de transtorno ou fazer julgamentos a respeito de sua condição não é o mais importante. O essencial é a obtenção de informações detalhadas de cada sintoma e que levem efetivamente em consideração as diferenças individuais. Esta última visão está presente na perspectiva da chamada abordagem dimensional, defendida por parte da comunidade médica. Uma das razões apresentadas pelos profissionais para defender essa abordagem é que ela confere maior flexibilidade clínica e não impõe a adoção de pontos de corte arbitrários.
Temos muitos motivos para buscar formas de fugir das “armadilhas” da categorização. No caso da aprovação, conheço escolas com experiências muito
bem-sucedidas de ampliação do universo de habilidades avaliadas, fornecendo subsídios mais sólidos para as decisões da equipe pedagógica. Quanto maior for a clareza dos objetivos, mais fácil se tornam estas decisões. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento que pode ser de grande valia no processo.
No caso dos diagnósticos das dificuldades de aprendizagem, devemos ter em mente que o objetivo não é enquadrar o aluno em uma categoria de transtorno, mas
identificar a melhor opção de supervisão e acompanhamento, sejam as intervenções pedagógicas, psicológicas ou médicas.
A capacidade de categorização está intimamente associada à aprendizagem, ela é essencial para que possamos entender melhor o mundo. Paradoxalmente, percebemos que em algumas situações esta pode não ser a melhor forma de lidar com a complexidade da espécie humana. Para perdermos preconceitos e contribuirmos para o desenvolvimento pleno de nossos alunos temos de transformar nosso olhar, para que ele se torne
menos categórico e mais dimensional.
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