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Uma zona ainda bastante cinzenta, repleta de dúvidas, cujas respostas serão dadas paulatinamente ao longo dos próximos dois anos. Isso se o processo de implementação for bem-sucedido. Este é o atual retrato do quadro emoldurado pela Lei 13.415, a nova lei do ensino médio, publicada pelo governo federal no Diário Oficial da União em 17 de fevereiro deste ano.
Gestores públicos e privados, estudiosos e interessados diretos, como alunos, professores e fornecedores de livros didáticos, por exemplo, ainda questionam diversos aspectos da lei e buscam definições para o processo de sua implantação.
Como o próprio texto prevê em seu artigo 12, o processo de implementação se dará, conforme cronograma estabelecido pelos sistemas de ensino, “a partir do segundo ano letivo subsequente à data de homologação da Base Nacional Comum Curricular”. Como a BNCC do ensino médio ficou descolada do resto da educação básica, espera-se sua aprovação e encaminhamento para o Conselho Nacional de Educação (CNE) apenas no segundo semestre de 2017.
Porém, como alerta o conselheiro do CNE César Callegari, o órgão só deverá tratar dela em 2018. “Se a BNCC for aprovada este ano, os conselhos estaduais terão mais um ano para normatizá-la, e as secretarias terão dois anos para a implementação.”
Como o Programa Nacional do Livro Didático está escolhendo neste ano as obras para o ensino médio a serem distribuídas para os dois ou três próximos exercícios, livros ainda não baseados na nova versão da BNCC, a efetiva implementação curricular se dará a partir de 2020.
BNCC e a carga horária
Mas, até lá, há ainda muita coisa a definir. A começar de aspectos do texto legal vistos como imprecisos ou mal definidos. Uma dessas questões, apontada pelo próprio Callegari à secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro, em webnário realizado pela Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) em 8 de março, refere-se ao limite de 1.800 horas para cumprimento da BNCC no ensino médio.
Segundo a secretária, que admitiu que a questão pode ser negociada com o CNE quando da regulamentação da lei, a intenção da equipe ministerial ao estabelecer a restrição foi a de garantir a flexibilização do currículo, para que não ficasse muito atrelado aos conteúdos obrigatórios da Base. O problema é que, ao definir 1.800 horas como limite, acabou por reduzir os conteúdos da Base a 42,8% do total da carga dos cursos em tempo integral que atingirem as 4.200 horas que a lei traz como meta.
Em tese, a base deveria atingir os 60%. Para Callegari, “é como se a lei definisse o tamanho do prato e natureza do talher” sem estabelecer a quantidade de alimento que ele conterá. Isso sem contar que a Base não é o currículo em si, que deverá ser elaborado pelos sistemas de ensino a partir dos parâmetros estabelecidos pela BNCC. Maria Helena espera, no entanto, que os ajustes não exijam mexer no texto da lei, apenas na regulamentação.
Desigualdade
Mas o temor central de vários analistas se refere à possibilidade de que a nova lei aumente o fosso da desigualdade em função da dificuldade de ofertar com qualidade o que a nova lei propõe. A começar, ressalta Eduardo Girotto, professor de ensino de geografia e coordenador do laboratório de ensino e material didático da FFLCH/USP, pelo fato de não contemplar o 1,65 milhão de jovens com idades entre 15 e 17 anos que hoje estão fora da escola. “O ensino médio hoje atinge 65,7% dessa população. Entre os negros, o acesso é de 59,4%, entre os 25% mais pobres, é de apenas 50%”, resume.
Como, em termos de financiamento extra, a lei prevê apenas o repasse por matrícula para as escolas de período integral, por um período de dez anos, a conta parece não fechar. “Fala-se em aumentar a carga horária para 1.400 horas, mas em nenhum momento se diz que vai aumentar a permanência do aluno na escola. O governo quer ampliar a carga horária sem ampliar os investimentos. Hoje, apenas 14% ou 15% das escolas têm laboratórios”, diz Girotto.
O receio, compartilhado por Callegari, é que a aposta esteja em dar ao aluno carga-extra provida por profissionais com notório saber sem preparo pedagógico suficiente ou com ênfase demasiada numa Educação a Distância que não esteja qualificada a contento. “Educação profissional não se improvisa, tem de ser feita de maneira metódica, exige coisas que poucos têm no Brasil, como o Instituto Paula Souza e o Sistema S. Quem vai oferecer essa educação, com que elementos e com que base? Temo que se faça de uma maneira aligeirada que iluda os jovens”, questiona Callegari.
Em evento realizado em São Paulo no mês de março, o secretário de Educação Básica do MEC, Rossieli Soares da Silva, considerou que a lei é um ato de “coragem” do MEC para mudar uma realidade que todos veem como inaceitável. “Muitos falam que as escolas não têm infraestrutura. Mas isso não é justificativa para não fazer nada”, disse, ressaltando que essas dificuldades também terão de ser combatidas, e que as limitações orçamentárias não podem travar a mudança.
Alta e baixa densidade
Para Ricardo Henriques, ex-dirigente do MEC e atual superintendente executivo do Instituto Unibanco, faltou à lei dar parâmetros que podem impactar custos e oferta, com olhares específicos para as áreas de baixa e de alta densidade demográfica. “É um desafio lidar com cidades pequenas e médias, onde é preciso mais professores para atender a todas as trajetórias, com a oferta tendendo a custar mais caro. Há muitos territórios com apenas uma escola”, explica.
Na outra ponta, nas regiões de alta densidade, o melhor seria coordenar a oferta, para que as escolas se especializassem nas trajetórias. “Você aumenta a possibilidade de garantir a oferta de qualidade em função do foco”, diz.
Henriques aponta uma oportunidade atrelada à lei: usar o tempo integral para a fixação dos docentes com dedicação integral, com um redesenho da carreira. “Essa seria a maior conquista, ter professores dedicados a uma escola. O tempo integral não deve ser pensado como empilhamento de aulas, deve permitir melhor planejamento”, conclui.
No âmbito do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação (FNCE), a preocupação maior neste momento é a de estabelecer uma agenda para os mais variados tipos de questões decorrentes da lei. Ester Carvalho, presidente do FNCE, relata que, após reunião no CNE em março, ficou estabelecido que o órgão terá grupos de trabalho para produzir agendas de curto, médio e longo prazo. Estas, por vezes, se confundem, como no caso das orientações para os cursos de formação docente, que ela mencionou tanto no curto como no longo prazo. No curto, pela urgência do tema. No longo, pois as mudanças na formação ainda terão de passar pelo Conselho Nacional de Educação.
Num primeiro momento, serão necessárias orientações para escolas e sistemas sobre como compor a matriz curricular dos 40% da parte diversificada, com diretrizes operacionais e definição de prazos. “Por exemplo, como fazer com a Educação de Jovens e Adultos e com o ensino noturno”, exemplifica Ester. Ambas as modalidades terão carga horária específica, dependendo de acertos locais.
Outros pontos são a questão da definição do notório saber (algo que promete muito barulho Brasil afora), a regulamentação dos processos de transferência dos alunos entre diferentes modelos de ensino (por exemplo, do técnico profissional para um dos outros quatro itinerários), além de dúvidas de ordem bem prática, como se o aluno pode fazer dois itinerários formativos. “Sim, pode. Mas não se forem ambos em período integral ao mesmo tempo”, já esclarece Ester.
O que o MEC diz
Pontos analisados pela secretária executiva Maria Helena Guimarães de Castro, durante webnário realizado pela Associação dos Jornalistas de Educação (Jeduca), no dia 8 de março.
Livros didáticos – Em 2017, o MEC está comprando nova safra de didáticos para o ensino médio, que deve valer até 2019 ou 2020. Só devem ser substituídos por obras que tenham a nova BNCC como referência em 2020 ou 2021.
Formação continuada – A Secretaria de Educação Básica já está planejando estratégias de apoio a estados e municípios para desenhar programas de formação que ajudem na implementação.
Implementação – MEC não fará monitoramento; estados e municípios terão autonomia. “Não vamos exigir nada que seja incompatível com a Constituição.”
Avaliações nacionais – Seu objeto será aquilo que é comum e obrigatório e que estará previsto na BNCC (os 60% da Base). Haverá revisão das matrizes de referência.
1.400 horas anuais – “É impossível imaginar que todo aluno do ensino médio será aluno de tempo integral, com 1.400 horas/aula por ano”, diz a secretária Maria Helena. Ou seja, não é obrigatório e nem esperado que os sistemas ofertem essa carga a todos em cinco anos.
Ensino médio noturno – “Será preciso conviver com as 2.400 horas” (nos três anos de curso), diz a secretária em relação à etapa, o que exigirá adaptações da BNCC. Ela prevê, também, pensando na população acima dos 20 anos, na oferta integrada à formação técnica profissionalizante. E defende que, nos casos de quem não trabalha, haja aumento de oferta diurna. Hoje, o noturno responde por 20% a 21% das matrículas do médio.