NOTÍCIA
Colunista defende a importância de assumirmos nossa afetividade
Publicado em 14/12/2016
Porque o mérito existe, sim, existe. É aquilo que me faz merecer uma recompensa. Curiosamente, séculos atrás, quem tivesse feito algo de errado também merecia… um castigo! “Mérito” valia para as duas situações. Quem acertava merecia aplausos. E quem errava merecia vaias. Hoje, o sentido negativo da palavra “mérito” encontra-se injustamente esquecido.
Se a meritocracia do sentimento existe, tem muito a ver com nossa liberdade. Sou responsável pelas emoções que cultivo. Sou responsável por minha afetividade. Uma pessoa raivosa pratica a raiva e deve responder por ela. Uma pessoa, por outro lado, pode tornar-se mais amorosa, e seu mérito residirá nisso.
O coração bate e apanha. O coração tem algo (ou muito) de incontrolável e imprevisível. Mas aí é que está o mérito de alguém que, conhecendo melhor as razões do coração, aperfeiçoa sua sensibilidade.
E haverá uma forma de “medir” o mérito da sensibilidade? A leitura de determinados textos literários pode ser um bom “termômetro”. Mesmo que breves, como na citação destes três versos de Atahualpa Yupanqui (1908-1992), poeta e músico argentino:
E o caminho lamenta
ser o culpado
da distância.
O caminho é a única forma de vencer a distância. Por que sente-se ele culpado por algo que não criou? Teria ele a culpa de obrigar o andarilho a gastar seus pés nesta caminhada? Pois é justamente esse o mérito do caminho. O caminho sente uma culpa que não é sua, mas nesse momento demonstra humildade e grandeza. O caminho sofre com o sofrimento do caminhante e se faz solidário. O caminho se torna digno de louvor pela beleza de seu sentimento.
A filósofa espanhola María Zambrano (1904-1991) escreveu um ensaio sobre a metáfora do coração. O coração como um espaço amplo e profundo em que se escondem indecifráveis sentimentos e de onde eclodem grandes decisões.
O coração é um órgão incomum. Sua nobreza está no fato de levar consigo (estas são palavras de Zambrano) “a imagem de um espaço, de um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas ocasiões, se abre”. Só podemos abrir nosso coração porque ele está fechado em sua intimidade. Quem abre o coração para os outros demonstra, por isso, confiança, e inegável generosidade. Quem abre o coração tem o mérito de compartilhar a humana sensibilidade.
Vê mais longe quem vê com o coração. O coração vê, mais do que isso, contempla. Contempla em silêncio, pois não tem palavras precisas para expressar-se. O que só reafirma sua profundidade. Precisamos aprender a não calar o silêncio das emoções. Precisamos aprender a deixar que as emoções se manifestem do seu próprio modo.
Uma adequada educação sentimental (sem sentimentalismos) estimula a linguagem própria dos sentimentos, que até poderá recorrer às palavras… Mas de forma alguma está restrita às palavras nem delas será escrava. O sentimento fala no silêncio, no olhar distante, nos gestos, no sorriso, nas lágrimas. As lágrimas, de modo especial, contam histórias cheias de sentido sobre o mundo afetivo e suas mil possibilidades.
O aprendizado das lágrimas é disciplina fundamental para a educação do coração. Não ter a capacidade de chorar é um preocupante analfabetismo. Impedir o choro (na alegria ou na dor) cria becos sem saída. Ter vergonha de chorar é imaturidade. No livro Do diário de Sílvia, de Erico Verissimo, a sofrida narradora fala de suas lágrimas no velório do tio Toríbio:
[…] quando eu já tinha chorado todas as lágrimas que existiam dentro de mim — inclusive lágrimas antigas e reprimidas, de outros choques e desgostos […]
As lágrimas que existem dentro de nós precisam sair. Por muito tempo reprimidas, perdem o prazo de validade. Perdem seu momento de manifestação. As lágrimas ajudam a enxergar melhor. Ao saber de tristes notícias, ao ler um livro valioso, ao ouvir uma linda música, ao assistir a um filme forte, o choro mostra com eloquência que estamos enxergando o coração da realidade.