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Entrevistas

Ex-ministro da educação fala sobre questões centrais da área

Ex-ministro indica formação de diretores escolares como forma de melhorar problemas de gestão

Publicado em 01/04/2016

por Redacao

 Alfabetizar melhor, fazer convergir as ações dos atores educacionais e melhorar o uso dos recursos públicos são questões centrais da educação para Renato Janine Ribeiro

© Gustavo Morita
Renato Janine: vivência no MEC deu real dimensão do problema da alfabetização

 
Aclamado pela grande maioria do meio educacional quando de sua indicação para o Ministério da Educação, Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo, ficou apenas seis meses no cargo. Sua saída serviu a uma acomodação política, com a volta de Aloizio Mercadante ao MEC.
Com grande produção acadêmica e uma passagem bem-sucedida como diretor de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Janine volta a olhar a educação brasileira do ponto de vista do intelectual que identifica questões sistêmicas. Agora, porém, com o olhar de quem já teve as rédeas das políticas – mais ou menos – em mãos.
Ao assumir o MEC, o senhor disse que precisaria fazer um mergulho nas questões da Educação Básica. O que mais chamou sua atenção?
Não tinha noção da gravidade do problema da alfabetização, o pior nó que temos hoje na educação brasileira. Dos alunos que terminam o 3º ano do fundamental, 22% não sabem ler, 35% não sabem escrever e 57% não sabem bem matemática. Nesses 57%, há níveis diferentes – aqueles que não sabem nada e os que fazem uma conta de somar e diminuir, mas não sabem multiplicar ou dividir. O fato é que 3/5 da população de 8 anos, depois de três anos de ensino, não tem o domínio pleno dos instrumentos necessários para continuar estudando, estão mais ou menos condenados a ter uma vida de segunda. Há uma chance de essas pessoas melhorarem, mas ela já diminuiu muito. O grande problema para melhorar a educação no Brasil é a dificuldade de os atores, os players, se entenderem e se acertarem. Esse é o ponto crucial. É preciso que haja um acordo maior entre União, estados e municípios, até porque a responsabilidade constitucional pelo ensino básico não é da União. Mas, sem ela, a coisa não funciona. É ela que pode colocar um dinheiro adicional e, sobretudo, dar a expertise que municípios pequenos não têm como ter. Serra da Saudade, em Minas Gerais, tem 800 habitantes. Como poderia montar seu plano de carreira, o currículo escolar, fazer seleção de professores? Esse acordo entre União, estados e municípios, embora ainda não esteja detalhado, não é tão problemático – a boa notícia é que está sendo criado o sistema nacional de educação.
O que foi mais problemático?
Lidar com os sindicatos, em especial com o do ensino superior público. Há uma grande dificuldade de conseguir unir as forças que deveriam se unir. No caso do ensino básico também há greves muito prolongadas. Uma greve de 90 dias como tivemos em São Paulo traz um custo gigantesco para os alunos. Não quero entrar nisso, pois acho que há culpa grande do governo estadual, tanto em São Paulo como no Paraná, por terem criado situações muito ruins para o trabalho, não estou culpando os professores. Mas é uma situação insustentável. No ensino, greve deveria ser um recurso de último caso. Nas universidades públicas, greve virou parte do calendário. O ponto que quis frisar desde começo foi que temos de melhorar o uso de recursos, pois há usos errados. Dou dois exemplos: ar-condicionado e luz acesa em salas desocupadas. Isso é praxe. Há um descompromisso com o dinheiro público. Outro caso é a duplicação desnecessária de atividades. Mandei revisar o EAD nas universidades federais, pois há duplicação de cursos. Há um número grande de cursos de pedagogia a distância sendo ministrados quando bastava que houvesse um, e que fosse o melhor.
O que o senhor identifica em termos de processos mal desenhados que leva a esse desperdício de recursos?
No Brasil, de modo geral, como quem ordena a despesa não é quem paga, existe um descompromisso. Isso até mesmo no nível doméstico. Na esfera pública, é muito pior. Tivemos esses dias em São Paulo algo escandaloso. Foi reduzida em uma hora a duração do tempo integral em 118 escolas estaduais e muitos pais não foram avisados. Escolas que deveriam abrir às 7h, abriram às 7h30; pais foram buscar os filhos às 16h, tinham de tirar às 15h30 e não foram avisados. Esse tipo de descaso com a função pública é muito forte. Tem custos de dinheiro, no caso do orçamento, e humanos no caso de desrespeito às famílias. Talvez isso também se prenda a problemas de gestão. Há muita dificuldade de gestão no setor público. Você tem de formar o diretor de escola. E há uma oposição grande de setores que, com pretextos ideológicos, dizem que isso significa privatização da escola. O MEC oferece grande número de recursos às escolas, mas o diretor tem de saber pedir, aplicar e prestar contas. Se não souber, ou deixa de pedir algo de que precisa, ou pede e não executa, ou executa e depois não faz prestação de contas adequada. Isso quando não há corrupção.
O que fazer para criar referenciais para os diretores?
Mandei preparar um curso a distância de formação de diretores. A ideia é, num primeiro momento, ensinar o diretor a lidar com toda a documentação. Mas o foco principal é que sejam capazes de examinar os dados estatísticos das avaliações que o Inep faz. Todos os anos há uma publicação de um anuário, um documento notável, com dados de cada estado, que podem ser desagregados por município ou escola, mostrando a evolução. Você pode pegar o aluno do 5º ano de uma escola tal, sala tal, em 2009, e pegar no 9º ano em 2013 na mesma sala e ver se melhorou ou piorou em português e matemática. Com isso, posso saber o que ajudou a piorar ou melhorar. O diretor tem de ser capaz de examinar esses dados, ver as salas que melhoraram com um professor ou pioraram com outros. Não é uma questão de punir o professor, mas de acompanhar cada caso. É o minimum minimorum que o diretor tem de saber. Também tem de conhecer as medicinas apropriadas. Há um grande rol de boas práticas, nem todas convergentes, há pessoas que acham o livro didático mais importante, outras preferem os sistemas educativos, e há uma disputa política aí, mas o diretor deve estar a par do que melhora os resultados. Há pontos que são consensuais: se você tiver estabilidade dos professores nas escolas, se não tiver turn over muito rápido, melhor; se tiver dedicação integral, também, e por aí vai. Alguns aspectos são incontestes, outros mais discutíveis, como o método a ser usado para a alfabetização, ou o livro didático e os sistemas. O professor tem de saber os prós e contras dos dois. A formação do diretor tem de começar por aí. A questão é até onde você faz a formação do professor. Numa fase de recursos escassos, o que determinei, que continua sendo preparado, é uma formação on-line. Mas também deverá haver um momento em que haja uma formação presencial.
Desde 2007, o projeto do Exame Nacional de Ingresso na Carreira Docente patina. Por quê?
É uma situação delicada, pois é preciso articular muitos atores. Permitiria economia substancial para estados e municípios e também a portabilidade do ingresso. Quer dizer, você prestou um concurso nacional, ele foi utilizado para você ingressar em São Bernardo do Campo, mas se você decidir mudar para Olinda, poderia portar o seu ingresso. A ideia de um exame nacional é de que seja um dos insumos que a prefeitura ou o estado possa utilizar, mas não o único. Essa prova avaliaria basicamente o conhecimento e a didática do candidato. Se o município quiser considerar se ele tem mestrado e atribuir um peso a isso, pode fazê-lo. Isso não estaria na prova. Além do exame, pode haver uma espécie de planilha que indique cada instrumento a mais a ser considerado – o mestrado, anos de serviço, outras coisas que atestem a qualidade do professor – a União poderia fazer um aplicativo que permitisse que cada sistema pontuasse como quisesse. Ainda na minha gestão, começou a ser feito um aplicativo que permitirá ver os planos de carreira de cada estado e município, porque o piso nacional trouxe questões sérias. Como, por exemplo, estados em que se ingressa com salário alto e depois há pouca promoção salarial. E outros em que há uma boca de jacaré: muito pouco no ingresso e depois sobe muito. A aprovação da lei do piso trouxe problemas nesses casos, porque você teve de reduzir a boca. Há estados em que a pessoa ingressa com um salário, mas no momento mesmo em que entra recebe adicionais que contam para a aposentadoria, fora do salário. Há no Brasil historicamente uma desarticulação muito grande no sistema, que tem de ser negociada. Qualquer mudança pode implicar vantagens maiores para um ou outro grupo. Por exemplo, se você está num estado em que o que é chamado de salário é mais baixo, com adicionais, o movimento sindical vai querer aumentar o salário mantendo todo o resto. Então terá uma vantagem comparativa em relação ao resto do Brasil e vai onerar aquele estado de uma maneira que não corresponde ao espírito da lei.
Ou seja, alguém terá de abrir mão de alguma coisa…
Ou abrir mão de algo que nem tem, mas que almeja.
Isso gera imobilismo?
Gera travas. Vamos pegar o caso das universidades federais. Tiveram aumentos salariais significativos. O governo Lula criou um monte de universidades. Muitos professores e funcionários não trabalhariam em universidade pública com o salário que ganham se não tivesse havido a expansão do sistema. No início do governo Dilma, o maior aumento que ela deu foi para as federais, 45% escalonados, superior ao dos outros setores. No ano passado, todos tiveram aumento de 5%, contra uma inflação de 6% de 2014 para 2015, ou seja, uma diferença pequena. Aí você tem uma greve de 4 meses. Isso não é justo. E todos sabem que o Brasil está numa crise substancial, não há recursos. A questão de greve é delicada, pois elas são injustas: no ensino básico, machucam seriamente crianças e famílias pobres, mas os professores precisam ganhar mais; no caso do sistema universitário federal, o dano é menor, porque você não está lidando com crianças, mas a greve é injusta porque os salários das federais são bons. Aqui na USP, onde sou professor, muitos docentes têm alunos que, quando defendem o doutorado, vão para as federais ganhar melhor do que aqueles que orientaram suas teses. A pessoa está começando a carreira com salário superior ao do seu orientador. O que mostra que o salário das federais não é ruim.
Como fugir ao círculo vicioso da desvalorização docente, cuja carreira atrai os piores alunos, que vão formar os novos estudantes e assim por diante?
A medida mais urgente é rever os currículos dos cursos de formação de professores da educação básica. Vejo três prioridades: primeiro, a formação de professor alfabetizador, que ficou em segundo plano desde o fim do normal, sem formação adequada; segundo, as didáticas específicas: temos de ter professores de história que saibam ensinar história e um professor de matemática que saiba ensinar matemática. Terceiro, é preciso formar educadores para a educação infantil, não só pela obrigatoriedade da pré-escola, mas porque temos de melhorar fortemente a creche e universalizá-la, pois é aí que as sinapses decisivas se formam. Temos de um lado escolas com bons métodos pedagógicos, que ensinam brincando e transmitem valores importantes, como o respeito ao outro, a igualdade, o não preconceito; de outro, crianças que o máximo que conseguem é alguém que as olhe. Se você é mais pobre, talvez o máximo que consiga é pagar para uma adolescente da vizinhança para olhar seu filho e outras crianças para que não se machuquem e comam na hora certa, mas sem nenhum aprendizado.
Não falta uma ação conjunta com outras áreas, que contemple questões como saneamento básico, por exemplo?
Propus isso à [ministra do Desenvolvimento Social] Tereza Campello. Houve uma ideia de juntar esforços do MEC, do MDS, da Saúde – e eu pensava no ministério [agora secretaria da Micro e Pequena Empresa] do [Guilherme] Afif também – para pegar os municípios com pior IDH e ter ações nesses vários pontos, que certamente estão combinados. Os municípios de pior IDH performam mal na educação, na saúde, no desenvolvimento social. O ministério do Afif ajudaria as pessoas a produzirem mais renda, não diretamente pelo emprego, mas pelo empreendedorismo. Um dos caminhos para o Brasil é esse. Desse ponto de vista, a extinção do ministério dele é uma pena. Apesar de a ação ter sido mantida no nível de secretaria, o Afif tem um conhecimento dessa área que é gigantesco. Em dois anos, conseguiu criar ou formalizar cinco milhões de Micro Empreendedores Individuais, que pagam R$ 42 por mês e, com isso, ganharam direito a aposentadoria. Quando há essa formalização é possível expandir seu rendimento.
O MEC de alguma forma atua nessa área?
Tem uma ação chamada Certificação de Saberes. Se você é pescador e analfabeto, o MEC faz um acordo com a Secretaria da Pesca e monta um curso de cerca de 160 horas, para esses pescadores. Mas eles só farão as horas de que realmente necessitarem, pois pescam muito melhor do que quem vem de fora. Mas podem aprender como comercializar, como garantir que o produto não estrague, português e matemática (para além das 160 horas). Com isso, recebem um certificado de pescador. Nossa meta era de que virassem MEIs. Ou seja, pescadores que estavam em condição desvalida passaram a ser capacitados para vender peixe para o mercado, tudo formalizado. São medidas em que a educação pode interferir também. Há várias formas de juntar esforços de diferentes áreas, com bons resultados.
As universidades públicas não poderiam ter um papel de maior relevância na formação docente?
Em primeiro lugar, é preciso dar um foco maior no aprendizado, formar professores que saibam alfabetizar, que tenham didáticas específicas, o que supõe várias disciplinas diferentes, formar para a educação infantil. As universidades públicas têm obrigação moral de fazer isso. É questão ética para elas e para os institutos federais de ciência e tecnologia serem solidários com a educação básica. Mas há um problema adicional: de modo geral, quem vai lecionar na rede pública é egresso de instituição privada. O que fizemos? Mudamos os critérios do Fies, para priorizar três áreas: professorado, engenharia e saúde. A ideia é que se financie o setor privado, com prioridade para os cursos nota 5, ou seja, fazer do Fies um instrumento de melhora nessa questão. Resta um problema crucial: como o salário na rede pública não é alto, os melhores não vão para lá. Há um esforço de várias prefeituras para que os professores da rede possam fazer mestrado e doutorado, com o risco de que, obtendo esses títulos, procurem um lugar que pague melhor. Isso bate em outra questão séria, que é o risco de apagão do professorado. Com o volume de aposentadorias e o caráter pouco atrativo do ensino básico, há essa dificuldade. O Plano Nacional de Educação percebeu isso bem, na Meta 17, que manda equiparar, até 2020, o salário do professor da rede pública ao de pessoas de mesma escolaridade de outras áreas.
Qual a sua visão sobre o PNE? O Plano não é muito dependente da Meta 20, do financiamento?
O PNE tem um grande problema, que é o financiamento. O Brasil coloca 6% do PIB na educação, como a Alemanha e a OCDE em geral, com uma educação muito melhor que a nossa. Mas o PIB per capita da Alemanha é cinco vezes o nosso. Se quiséssemos equiparar os 6% deles, teríamos de colocar 30%, o que é fora de questão. Quase todo o PNE é correto, não há muito a contestar. O problema é fazer isso na prática e o fato de que veio junto com a convicção de que basta colocar dinheiro, que isso resolve. A questão da qualidade ficou muito em segundo plano.
Algumas metas não são ambiciosas demais, como a de atender 50% de 0 a 3 anos apenas com recursos do Estado? A Itália atende em torno de 40%, com contribuição das famílias.
Aí entra uma ideologia que diz ser de esquerda – mas se fosse estaria preocupada com o aprendizado dos alunos -, mais atenta aos meios do que aos fins, sem aceitar avaliação, a responsabilização do professor. Isso atrapalha muito. O Brasil não vai conseguir fazer o PNE. Isso é óbvio. Já temos dois anos perdidos. Pouco depois que o PNE foi votado, começou essa grande crise econômica. Estamos com queda no PIB, especialmente do PIB per capita. Quando a economia começar a melhorar, teremos de recompor o que foi perdido. Não está assegurado que terminaremos esse mandato com PIB per capita igual ao do começo. Hoje não dá prever. É preciso mais dinheiro para a educação. Mas você só vai convencer a sociedade de que é preciso tributar mais se você mostrar serviço. E isso está faltando. Nosso desempenho não é dos melhores. A Capes criou o PIBID, que é muito bom. Mas apenas 20% dos que saem do PIBID vão para a rede pública. Estão sendo formados profissionais bons, que estão entrando em concursos na Petrobras e no Banco do Brasil. Mas o PIBID não é para isso. Temos problemas de articulação das ações que poderiam ser mais bem amarradas. Dei o exemplo de as universidades federais ministrarem vários cursos da mesma disciplina a distância. Também é preciso ter uma responsabilização maior de todo o sistema federal de ensino. Dou um exemplo: dei posse a um reitor de um instituto federal de ciência e tecnologia, ensino técnico que tem de desenvolver a região. Ele tomou posse dizendo que suas metas eram inclusão social e valorização do servidor. Respondi que o instituto não foi feito para isso, para o umbigo dos servidores, nem mesmo para inclusão social. Ela é um meio importante, mas o principal que o instituto deve fazer é ver a economia da região e ver o que pode ser desenvolvido, o que pode ser feito para melhorar a mão de obra local. Esse é papel dele. A inclusão é fundamental para ter bons servidores, mas não se pode confundir o meio com o fim. Estamos numa situação em que essa prestação de contas à sociedade, mostrando o que estamos fazendo de bom que justifique um aporte maior de dinheiro, é um problema. Não digo que estamos trabalhando mal, vejo muita gente trabalhando com afinco, mas para aumentar a tributação é preciso mostrar bem mais do que isso. É preciso eliminar todos os focos de desperdício e usar muito a avaliação para melhorar. Nesse ponto, infelizmente, os movimentos sindicais são muito reticentes.
Não há exagero no uso das avaliações de larga escala ao atrelar-se todo o processo educacional a elas, retirando espaço do professor?
Penso que ainda não. Avaliação não é tudo. Quando alguém me pergunta “onde vou colocar meu filho?”, falo “olhe o Ideb, o Enem, mas aí vá à escola”. Não adianta pegar o melhor Enem da cidade de São Paulo e dizer quero porque quero colocar o meu filho nessa escola, pois você pode não gostar, os valores podem não ser os mais adequados, a escola pode frisar muito só os pontos avaliados. O mundo existe muito além da avaliação. Algo muito importante é a formação da pessoa, que não se reduz a saber matemática e português. Não temos condições também – e nem sei se seria desejável – de fazer uma avaliação de todas as matérias com a profundidade que se faz de português e matemática. É difícil avaliar artes, e talvez muito menos útil avaliar o ensino de artes do que essas duas grandes linguagens. Agora, enquanto o básico não estiver garantido, não dá para abrir mão da avaliação. Por exemplo, a alfabetização no Ceará: eles chegaram a fazer o material didático. A União, quando fez o Pnaic, inspirado no Ceará, tirou de cena os governos de estado e quis lidar direto com as escolas e com as universidades. As universidades não ajudaram, a saída dos estados prejudicou o processo e a União não fez o seu próprio material didático. A ideia era de uma independência maior do professor, enquanto a ideia do Ceará era de um monitoramento o tempo todo. Havia um acompanhamento frequente da alfabetização e, quando havia problemas, um professor responsável pela classe ia visitar a família e saber o que estava acontecendo. Neste momento, essas coisas são cruciais. Quando você tiver professores bem capacitados, será diferente. Dou outro exemplo: a defesa dos sistemas alega que eles aceleram o aprendizado. Mas o sistema é eficaz quando você tem um professor despreparado, ou mal preparado. Quando há um professor bem preparado, é claro que é preferível que ele prepare a aula. Isso bate num círculo vicioso que estamos vivendo. De um lado, há gente dizendo que pondo mais dinheiro e aumentando os salários resolve; de outro, há quem defenda que há muitas maneiras de melhorar a educação sem passar pelo aumento do salário do professor. As duas visões são incompletas. Tudo o que há na internet – Khan Academy etc. – ajuda, mas não prescinde do professor. A escola é socialização, e por isso precisa ter contato com gente de carne e osso. É a maneira pela qual a criança vai saindo do pai e da mãe, vai criando relações de afeto, amor e ódio com professores e professoras, até encontrar o caminho dela. E isso não se substitui com técnica.
Até que ponto a avaliação sobre o resultado final é mais eficaz do que a avaliação sobre os diversos insumos do processo, como infraestrutura, professores etc.?
O essencial é o resultado. Quando fui diretor da Capes, a avaliação da pós-graduação considerava muito os insumos e muito pouco o resultado. Fomos enfatizando cada vez mais o resultado, vendo se os programas de pós-graduação estão formando bem os mestres e doutores. As teses e dissertações que defendem são boas? Esses alunos publicam? Isso é mais importante do que saber quantos professores fizeram pós-doutorado. E isso levou a outra reflexão, que não cheguei a adotar na Capes, que é ver o resultado em relação aos insumos disponíveis. No caso da Capes, era quase contraditório. Contava na avaliação se você havia obtido recurso de Capes, CNPq, Fapesp, isso era positivo. Só que fora de São Paulo há agências de fomento muito mais pobres. E se todos os recursos não repercutem no resultado, eles estão sendo mal usados. Uma das questões discutidas foi se não seria o caso de fazer uma equação insumos/resultados para ver se quem tem mais insumos está realmente utilizando isso na meta da pós-graduação, que é fazer pesquisa e formar gente. No caso da educação básica é óbvio que você tem de ver todos os insumos. Se você tem uma escola que não tem banheiro, acesso à internet, cujo fornecimento de luz é precário, é óbvio que não se pode cobrar dela o mesmo resultado. Com a avaliação, você tem o resultado, aí vê o que gerou o resultado. A avaliação não visa simplesmente dar nota ou salário para o professor, visa saber qual é o problema. Ver se tem problemas de estrutura física, de coordenação, de formação do professor, é isso que ela vai averiguar.
E quem deve se apropriar da avaliação?
Se o diretor for bem formado, ele já percebe isso. Mas é preciso uma instância externa que faça isso, procurando ver quais são os problemas e tomando atitudes. Senão, facilmente você acoberta os problemas. Não se trata de fazer uma intervenção federal na escola, como foi cogitado pelo [ex-ministro] Mangabeira Unger. Trata-se de fazer as escolas melhorarem. Para isso, é preciso juntar esforços. Alguns institutos privados fizeram estudos muito bons sobre isso. E esses institutos têm visões muito diferentes. O Cenpec e o Instituto Ayrton Senna veem as coisas de maneiras diferentes. Há muito conhecimento já existente no Brasil, que acaba tendo pouca aplicação para resolver o problema.
Como o senhor vê o lugar da escola hoje?
Vejo três questões que se colocam para a escola. Você tem de garantir a universalização, então precisa que todos os alunos estejam na escola com a idade adequada. Nesse indicador, melhoramos muito nos governos Lula e Dilma. O segundo ponto é melhorar a qualidade. Os indicadores ano a ano mostram que não houve uma piora do ensino nas escolas no Brasil, apesar da expansão. Mas a melhora não foi grande. Agora que o fundamental está quase todo universalizado, dá para investir bastante na melhora. E o terceiro ponto, que é o que mais responde à pergunta, está relacionado à criatividade. Você não pode manter o mesmo modelo de escola. Quando a gente pensa em universalização e melhora de qualidade, está pensando em ampliar e melhorar a escola como ela existe. Não pode ser. Tem de modificar muito. Por isso criei um programa no MEC para identificar as escolas inovadoras. Foram criados grupos de trabalho, dirigidos pela Helena Singer, e o objetivo era ver quais são as escolas no Brasil que têm um trabalho criativo, inovador, que pensam a escolarização de outro jeito. Isso é decisivo. Há um papel da escola que permanece o mesmo e tem valor: o de tirar a criança do mundo da família e de colocá-la na sociedade. Desde o começo, a escola exerceu esse papel. De forma melhor ou pior conforme a época. Hoje, temos de levar muito em conta elementos de formação da pessoa, em termos psicológicos e éticos, que antes não eram considerados. Um exemplo: a escolaridade obrigatória termina no ensino médio. É preciso que a pessoa tenha aí um conhecimento completo sobre certas coisas. E onde não existe esse conhecimento completo? Sobre o funcionamento da sociedade e sobre a psique. Temos três anos de filosofia e de sociologia, mas precisaríamos ensinar como é a sociedade moderna, atual, estratificada em classes, seus conflitos. Segundo ponto: teríamos de entender o que é a economia atual, basicamente capitalista, mas também com espaços de cooperativismo e de solidariedade. Se você não souber isso, se forma aos 17 anos e não sabe o básico. Terceiro ponto: como funciona a democracia – grega, moderna, direta, representativa, parlamentarismo, presidencialismo, voto distrital, voto proporcional – as pessoas têm de ter uma formação sobre isso, não ideológica. E também seria bom ter psicologia, uma formação para a vida. O máximo que ingressou nesses anos foi a ética, mas de maneira insuficiente.
E às vezes confundida com regras…
Ah, sim, confundem com disciplina. Em vez de gerar um sujeito autônomo, que tome decisões, às vezes difíceis, e arque com elas, vem regras. E o pior é que quando há uma contestação às regras tradicionais, ela se dá em nome de novas regras. Hoje, uma parte dessa querela gigantesca em que o país está metido, que inclui questões como feminismo, aborto etc., é que há escassas discussões que deem às pessoas o espaço para elas escolherem seus caminhos.

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