NOTÍCIA
Por que as salas de ensino regular não são reconhecidas como locais onde é possível aprender uma língua estrangeira? Novos programas de formação docente tentam mudar esse cenário
Publicado em 04/03/2013
Arthur: frustração por não entender os americanos em viagem à Disney |
Letícia frequentou aulas de inglês durante toda a vida escolar. Arthur começou a estudar a língua estrangeira bem cedo, aos 4 anos. Mesmo assim, nenhum dos dois se sente seguro para se comunicar com falantes nativos do idioma. A percepção de que os brasileiros falam mal o inglês tem sido comprovada por pesquisas, e coloca em questão os objetivos do ensino de idiomas na educação escolar. Afinal, por que o senso comum diz que não se pode aprender a língua considerada “universal” na escola regular?
Para Rose Feba, professora do nível fundamental e médio da Escola Estadual José Polli, de Itupeva (SP), o problema já vem da falta de conhecimento da própria língua portuguesa. Considerando as diretrizes do Ministério da Educação para o ensino do inglês, Rose considera “impossível” cumprir tais orientações. “As classes são tão heterogêneas em termos de patamar de aprendizagem que, no geral, acabamos por não cumprir toda a proposta curricular”, reclama a professora.
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Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira para o Ensino Médio, de 2006, citam o desafio de superar a percepção de que o aprendizado de uma língua estrangeira se concretiza apenas em cursos de idiomas. Em sua pesquisa de mestrado na Universidade de São Paulo, O professor de inglês da escola pública: investigações sobre suas identidades numa rede de conflitos, a consultora de educação Renata Quirino observou que os próprios professores e a escola também acreditam não ser possível ensinar uma língua estrangeira na educação formal.
Confusão de sentidos
Parte desse problema é a confusão entre os objetivos do ensino da escola formal e dos cursos de idiomas, defende Renata. “Segundo os Parâmetros, os grandes objetivos das escolas regulares são o desenvolvimento de estratégias e habilidades para lidar com a língua estrangeira, por meio da oralidade e da leitura, e o exercício do pensamento crítico – ou seja, o professor deve trazer para a aula temas a partir dos quais o aluno perceba outras culturas e formas de pensar que não são do próprio país”, diz Renata.
A partir e depois disso é que a escola regular deve se voltar para a questão da fluência. Mas é possível que os alunos da educação formal atinjam a tão desejada fluência em uma língua estrangeira? “Depende de cada contexto: do aluno e do professor. Acho que é uma tendência que está chegando para ficar. Mas, enquanto não tivermos um processo de formação de professores, não temos garantia de que isso ocorrerá”, opina Renata.
Para a professora de inglês de escolas municipais de São Bernardo do Campo e de São Paulo, Aline Dias, o ensino de língua inglesa na rede pública, especificamente na municipal de São Paulo, é “bastante precário” não por falta de material didático de apoio, mas pelo contexto educacional como um todo. “Os alunos, em sua maioria, não têm nenhum tipo de motivação e/ou objetivos claros a seguir dentro da escola; além disso, há a aprovação automática”, exemplifica.
Outra questão que atinge não apenas a rede pública, mas também a particular, é a desvalorização da disciplina frente às demais. “A visão equivocada de que o componente curricular seja de importância relativa na grade curricular faz com que lhe seja atribuída baixa carga horária e que não haja um contexto favorável para que se desenvolvam as quatro habilidades linguísticas: falar, escutar, escrever e ler”, avalia Marília Negrini, coordenadora do departamento de inglês do Dante Alighieri, escola particular de São Paulo.
Aline, da rede pública, lembra ainda outras dificuldades que ela reconhece na rede particular. “Nas escolas privadas, o ensino de língua inglesa ainda é algo polêmico, porque os alunos e as famílias não acreditam na possibilidade de aprender uma língua estrangeira na escola regular, cuja maioria dos estudantes frequenta cursos de idiomas.”
Barreiras na escola
Uma pesquisa realizada pela professora Ana Lúcia Ducatti, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp de São José do Rio Preto, mostra onde estão os entraves da aprendizagem. O estudo, realizado em 2010 em uma escola pública, constatou que um dos empecilhos para melhor assimilação de conteúdo em inglês é a aula ser dada em português. Além disso, Ana Lúcia indica como obstáculos o despreparo e a jornada até tripla dos professores e o foco do ensino na gramática, e não no uso do idioma, como o MEC orienta. A pesquisa revela ainda que os professores carecem de material didático adequado.
Renata Quirino concorda. Para a pesquisadora, existe a ilusão de que basta algum tempo de exposição à língua para que as habilidades se desenvolvam. “As crianças têm duas ou três aulas de inglês por semana, e se elas não estão ouvindo e falando em inglês, esse tempo não é suficiente”, diz, completando que a língua inglesa precisa ter espaço diferente dentro da escola, e não ser vista apenas como uma “disciplina extra”. Renata defende ainda a necessidade de as avaliações serem feitas de forma processual, ao longo do ano. “Não é possível melhorar o ensino com provas de memorização”, analisa.
As descobertas da neurociência sobre a capacidade de aprender uma nova língua têm estimulado que as aulas de inglês sejam iniciadas para crianças cada vez menores. Renata acredita que essa possa ser uma boa alternativa para melhorar o ensino do idioma, mas no contexto de essas crianças terem experiências ricas desde cedo, de forma lúdica. Caso a qualidade do trabalho não permaneça nos demais anos, não há garantia de aprendizagem. “Se o processo ficar estagnado, a criança não vai evoluir”, destaca.
Ensino para os menores
No Colégio Nossa Senhora de Sion, em São Paulo (SP), as duas estratégias são colocadas em prática: os alunos começam a ter aulas aos 4 anos e ficam mais tempo expostos à língua inglesa. São quatro aulas semanais de 50 minutos cada. “Usamos didática lúdica e baseada em situações concretas para a captação do conhecimento ser significativa e prazerosa”, diz Maria Bernadete Silveira, coordenadora pedagógica da educação infantil.
Arthur Marques, que cursa a 4ª série do ensino fundamental no Colégio Paulistano Henri Wallon, aprendeu a partir de jogos de memorização as primeiras palavras em inglês, aos 4 anos, em outra escola. “Hoje, ouvimos CDs em inglês e temos de responder perguntas da professora também em inglês”, conta Arthur, que ficou frustrado por não ter compreendido totalmente os norte-americanos em recente viagem à Disney. “Quero entender tudo”, diz.
Nesses casos, os pais costumam investir em escolas especializadas no ensino do inglês. Mesmo assim, são comuns alunos prestes a deixar o ensino médio que não se comunicam fluentemente.
É o caso de Letícia Gerola, aluna do 3º ano do ensino médio do colégio Marista Arquidiocesano. “Mesmo tendo estudado sempre em escola particular de qualidade e frequentado cursos extracurriculares, meu inglês só ganhou fluência depois de um intercâmbio no Canadá, onde ampliei bastante meu vocabulário”, conta Letícia.
A falta da oralidade justifica a debandada geral dos estudantes para os cursos extracurriculares: “Essa visão pode ser explicada se entendermos a expressão oral como parte visível da aprendizagem de uma língua estrangeira. Como consequência desse pressuposto, a sociedade espera que a habilidade da fala seja desenvolvida até a excelência em um curso de inglês”, explica Marília Briza Negrini, professora e coordenadora do departamento da língua do Dante Alighieri.
Professores em formação
A consultora de educação Renata Quirino está trabalhando na formação de professores que atuam no primeiro ciclo do ensino fundamental da rede municipal de São Paulo. Seu principal objetivo é fazer com que as aulas da rede sejam todas dadas em inglês. “Nossa proposta é nova: queremos vivenciar a língua dentro da própria língua – fazer contação de história, música, tudo em inglês, o tempo todo. É um processo lento, que vai levar um bom tempo”, admite.
Rose Feba, professora da Escola Estadual José Polli, de Itupeva (SP), diz que as escolas públicas paulistas estão proporcionando cursos de inglês on-line e presenciais inteiramente gratuitos para seus alunos. “Em paralelo, a Secretaria Estadual de Educação oferece muitas oportunidades de formação de professores”, acrescenta Rose.
O aprimoramento de mestres da rede pública de ensino também é observado em pós-graduação oferecida pela Cultura Inglesa em parceria com a PUC-SP. O programa conjunto ainda promove o curso via internet Teacher’s Links, de aperfeiçoamento pedagógico. “Já atendemos 5,8 mil professores de inglês de escolas públicas, estaduais e municipais. O problema é que, por conta da carga de trabalho que têm em suas escolas, alguns professores deixam o curso antes do fim”, lamenta Maria Antonieta Celani, coordenadora do projeto.
“De modo geral, o inglês no Brasil melhorou. Apesar dos obstáculos, é viável ensinar a língua estrangeira na escola regular, desde que fiquem claros os objetivos. A orientação da Secretaria de Educação de São Paulo não é que o aluno saia falando inglês da escola regular, mas que ele tenha contato com a língua, que ele absorva aspectos de uma nova cultura”, afirma Glaucia Ferro, professora de educação da USP. “O aluno tem de sair da escola com uma compreensão global, tanto da linguagem escrita, quanto da linguagem falada, sendo capaz de participar do mundo multilíngue e multimídia”, acrescenta.
Sobre a diminuição da proficiência de inglês, revelada pela pesquisa de intercambio EF, a professora aponta as diferenças entre o Brasil e a Europa, por exemplo. “Nosso país tem uma desvantagem geográfica. Na Europa, as pessoas têm contato com outras línguas mais facilmente, por conta do deslocamento entre os países”, defende. Glaucia acredita que a amostragem do estudo é muito heterogênea – de 18 a 50 anos – e o fato de os testes terem sido aplicados pela internet pode ter contribuído para o mau resultado. O caminho para aprendizagem de qualidade deu saltos, mas vai além da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016.
Sem domínio da língua |
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A percepção de que os brasileiros falam mal o inglês foi comprovada em pesquisa da empresa de intercâmbio EF, realizada entre 2009 e 2011, e divulgada no ano passado: o Brasil está em 46º lugar do total de 54 nações pesquisadas no que se refere ao domínio da língua inglesa. O nível de habilidade no inglês foi medido a partir de três testes on-line: dois não adaptativos – disponíveis gratuitamente a qualquer pessoa – e baseados em 60 e 70 perguntas, respectivamente. O terceiro, de nivelamento, foi aplicado na inscrição dos cursos da EF e consistiu na aplicação de 30 perguntas, cada uma vinculada à outra pelo grau de dificuldade. Em todos os testes, foram testadas habilidades em gramática, vocabulário, leitura e audição. Os participantes fizeram os testes a partir do próprio computador, em casa. Foram incluídos no estudo países com um mínimo de 400 participantes. Outro indício da dificuldade do brasileiro com língua estrangeira foi o lançamento, no final do ano passado pelo governo federal, de um programa de aperfeiçoamento da língua inglesa para os estudantes que queiram fazer intercâmbio pelo programa Ciência sem Fronteiras, que propicia bolsa para alunos brasileiros que queiram estudar no exterior. A pontuação mínima exigida na prova de inglês para participar do programa também foi reduzida. |
Diferentes Brasis |
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Obstáculos para ensino da língua inglesa não são apenas qualitativos. Segundo dados de 2010 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mais de 72,3 mil escolas de ensino fundamental nacionais ofereciam inglês na sua grade curricular. Em 2011, números do Inep apontavam alta para 74,7 mil. No entanto, em algumas regiões houve redução no número de colégios que oferecem o idioma, como observado nos estados do Amapá, Ceará, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. |