NOTÍCIA
Coordenador dos programas de Educação da Unesco no Brasil defende que PNE não dialoga com outros planos do governo e tampouco regulamenta regime de colaboração entre estados e municípios
Publicado em 29/11/2011
Nascido na Itália, com passagens pela Bósnia, pelo Afeganistão e pelo Caribe, o mestre em direito internacional e em educação Paolo Fontani coordena um dos três maiores programas de Educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em todo o mundo – o do Brasil. Sob sua direção, de maneira discreta, mas intensa, esse organismo de cooperação internacional vem participando ativamente de processos fundamentais para o desenvolvimento da educação pública brasileira, como é o caso da nova versão do Plano Nacional de Educação (PNE), em vias de votação no Congresso Nacional. Agora, por exemplo, a Unesco realiza um estudo, com a ONG Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que busca dimensionar o ainda desconhecido custo-aluno para o ensino em tempo integral, proposto no PNE. Em entrevista concedida ao repórter Paulo de Camargo, Fontani defende que o Plano Nacional de Educação traz avanços, mas carece de uma articulação com outros planos centrais do governo, como o PAC. Além disso, afirma que a legislação depende de um regime de colaboração mais claro, que defina o papel do governo federal, dos estados e dos municípios.
Como a Unesco vem acompanhando os movimentos da educação brasileira?
Nosso trabalho se realiza de diferentes maneiras. Acredito que temos, fundamentalmente, uma tarefa de sustentação das políticas públicas, que passa pelo desenvolvimento de estudos e de pesquisas e pelo que se chama advocacy. Ou seja, queremos manifestar para a opinião pública nossa posição sobre alguns temas, para que sejam discutidos, mas para isso precisamos estar amparados em estudos realizados em parceria com universidades e centros de pesquisa. Há pouco tempo, por exemplo, publicamos um estudo sobre políticas públicas de desenvolvimento de carreiras docentes, que é um tema fundamental, relacionado a políticas de valorização do docente, qualidade, entre outras questões atuais. Para aprofundar os debates, precisamos agregar elementos novos, como neste caso. Outra possibilidade de atuação da Unesco é a participação no desenvolvimento de políticas públicas. Somos parceiros do governo, por exemplo, no programa Brasil Alfabetizado. Do mesmo modo, apresentamos ao Conselho Nacional de Educação uma proposta curricular de ensino médio, que está muito interessante e em breve poderá ser implantada, como piloto, em algumas redes estaduais.
Quais pesquisas estão em desenvolvimento atualmente?
Estamos fazendo um estudo interessante, em conjunto com a ONG Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que é o desenvolvimento de um indicador de custo-aluno do período integral. No momento, fala-se em ter 50% dos alunos em tempo integral até o ano de 2020. Esse é claramente um tema polêmico: fala-se de melhoria na qualidade, mas uma pergunta-chave ainda não respondida é quanto isso vai custar para o Brasil. Estamos tentando calcular, pois o esforço que o MEC terá de fazer será grande. Precisamos lembrar que já temos outros processos em curso que demandam recursos, como a extensão da idade obrigatória, a construção de creches, a requalificação dos professores. Por isso, estamos tentando criar unidades de custo com diferentes variáveis para ajudar no debate.
Mas o governo diz que os investimentos em educação devem continuar crescendo…
A Unesco subscreveu, com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Todos pela Educação, Campanha Nacional pelos Direitos à Educação, entre outras entidades, uma carta de compromisso apresentada para os dois então candidatos à presidência, Dilma Rousseff e José Serra, que aponta para um gasto de 10% do PIB em 2020. É algo como aumentar 0,5% ao ano. Quanto mais, melhor, mas não podemos perder de vista o realismo desses investimentos. Para nós, seria muito importante o governo honrar o compromisso de elevar a 7% do PIB o percentual de investimentos em educação até 2014, aumentando o percentual em 0,5% ao ano. Mas se o índice é importante, continua sendo fundamental fazer a pergunta inversa: quanto custa o sistema educativo que a sociedade brasileira quer para seu país?
Qual a posição da Unesco em relação ao ensino em tempo integral?
Não se trata de ser a favor ou contra. Nosso trabalho não é o de dizer se é bom ou ruim. A ciência não traz respostas secas. Mas precisamos de elementos para balizar o debate, que é complexo. Por exemplo, o Brasil tem uma lei que determina 800 horas de aula, mas sabemos que não é bem assim. As horas-aula duram, na verdade, de 45 a 50 minutos de tempo letivo, às vezes menos. Há um espaço para otimizar o tempo efetivamente dedicado ao ensino sobre o qual se pode trabalhar. Além disso, precisamos saber se simplesmente adicionar mais horas garante melhor aprendizagem. A Finlândia tem menos horas obrigatórias que o Brasil e seu desempenho no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) é muito bom. Temos de pensar na quantidade de horas, sim, mas também na qualidade. O que estamos chamando de ensino em tempo integral? Qual é o projeto que está em debate?
A educação brasileira vem avançando, de seu ponto de vista? Quais são os desafios que nos esperam?
Aconteceram grandes avanços, mas que trouxeram novos dilemas. A democratização do acesso à educação, a extensão da obrigatoriedade do ensino dos 4 aos 17 anos, o maior interesse da sociedade pela educação, o maior espaço ocupado pelo tema nas agendas dos governos… todos esses são fatos muito importantes. Mas há grandes desafios a serem enfrentados pelas escolas públicas, relacionados, por exemplo, ao sucesso escolar – as taxas de abandono e de reprovação estão entre as mais altas da América Latina. A expansão do sistema e a demanda por qualidade geraram novos debates acerca da efetividade da universalização e democratização do ensino e do direito a uma educação pública de qualidade.
Ou seja, a democratização da educação acabou por gerar uma dinâmica de mudanças necessárias…
A democratização do acesso constrói novos nichos de exclusão dentro do sistema, além de resultados que contrariam o princípio do direito à aprendizagem. Os resultados educacionais apontam para nichos de exclusão fortemente concentrados nos estratos da população historicamente excluídos: aqueles com renda mais baixa, das regiões norte e nordeste do país, entre negros, pardos e indígenas.
Qual a sua opinião a respeito do Plano Nacional de Educação?
Temos participado bastante dos debates sobre o PNE. Como somos um organismo internacional, não nos compete propor emendas, o que cabe às instâncias nacionais. Ficamos honrados em participar do debate, como convidados, e apresentamos nossa visão em várias ocasiões. Temos alguns pontos que achamos especialmente importantes. Acreditamos que é necessário haver um diálogo entre o PNE e os outros grandes planos de governo. O PNE precisa conversar com o PAC, até para sinalizar o papel de protagonismo da educação para o futuro do país. Outra questão relevante é o do chamado regime de colaboração entre estados e municípios. Não existe ainda uma delimitação precisa das responsabilidades e dos compromissos de cada um. Falta uma regulamentação mais clara, cada vez mais urgente. Por fim, um terceiro ponto ao qual chamamos a atenção é a necessidade de um sistema eficaz de monitoramento e avaliação das metas. Da forma como está proposto, falta estabelecer metas intermediárias para que a opinião pública e os gestores possam avaliar se tudo caminha na direção certa.
No que impacta, por exemplo, a falta de um regime de colaboração?
Há dois anos publicamos um trabalho sobre o tema da descentralização na gestão da educação, comparando com o processo do Sistema Único de Saúde (SUS). Achávamos que era preciso olhar a condição de trabalho efetiva de um sistema descentralizado na área de educação. Vimos, de fato, que alguns mecanismos são muito positivos, como o Plano de Articulação de Metas, que dá transparência à transferência de recursos públicos. Mas, quando se descentraliza, é preciso que todos saibam quais são as suas responsabilidades. É preciso compreender que nem sempre a descentralização de recursos pode ser acompanhada da descentralização da capacidade técnica. É o caso de municípios pequenos, que têm uma responsabilidade enorme, mas recursos técnicos insuficientes para atuar sozinhos. Por isso, é necessário um movimento de arranjos educativos, unindo municipalidades de mesma região, mesmo perfil, que podem se unir para resolver desafios. A Unesco tem acompanhado muitos municípios justamente para fortalecer sua capacidade, inclusive aportando experiências internacionais.
Como os senhores trabalham para ajudar os municípios?
Atuamos em diversas frentes. São projetos de intervenção na ponta do sistema educacional, ou seja, na implantação de projetos e na agregação de competência técnica. Trabalhamos, por exemplo, em projetos de avaliação de sistemas educacionais e na formação de gestores. Agora mesmo, estamos transformando um modelo de um curso de formação de gestores para funcionários concursados seniores do MEC para turmas das redes estaduais e municipais da educação. Estamos fazendo muitas coisas diferentes. Hoje o programa de educação da Unesco no Brasil é um dos três maiores do mundo e é muito dinâmico, estamos muito contentes com isso.
Como as escolas e os educadores podem aproveitar os materiais produzidos pela entidade?
Há um exemplo muito atual. Um dos mais importantes lançamentos dos últimos anos é a edição em português da História geral da África, com oito volumes. É uma grande obra que descreve a cultura africana, de forma nova. Isso já está em nosso site. Mas estamos também desenvolvendo um material pedagógico baseado nessa coleção para que chegue a cada professor do Ensino Fundamental 1. É um caso típico de como o trabalho de pesquisa e de desenvolvimento de obras pode impactar o desenvolvimento da cultura e da educação no país.