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Entrevistas

Autor

Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino

Publicado em 10/09/2011

Educar não é domesticar

Falecido em 27 de junho último, o poeta e professor Bruno Tolentino concedeu à revista Educação aquela que, provavelmente, foi sua última entrevista. Com a veia de polemista ainda bem viva, desancou a tradição francófila da USP e criticou a educação que visa domesticar.


Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino

Poeta e professor, o carioca Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino voltou ao Brasil em 1993 após uma temporada de quase 30 anos na Europa. Na bagagem, trouxe, além do reconhecimento de autores como W. H. Auden e Saint-John Perse, a experiência de lecionar por mais de dez anos em universidades britânicas (Oxford, Bristol e Essex) e a vivência de alfabetizar detentos e organizar oficinas literárias na penitenciária de Dartmoor, onde ficou preso 22 meses por tráfico de drogas. Dirigiu, ainda, a Oxford Poetry Now, a editora de poesia da Universidade de Oxford.

Aqui, ganhou o Prêmio Cruz e Sousa 1996 com A Balada do Cárcere, o Abgar Renault 1997, o Senador José Emírio de Moraes 2003, concedido pela Academia Brasileira de Letras, e dois Jabutis: em 1995, com As Horas de Katharina, e em 2002, com O Mundo como Idéia. Ganhou, ainda, o reconhecimento público de vários intelectuais, entre eles Miguel Reale, Antônio Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Olavo de Carvalho e José Guilherme Merquior. Só não ganhou na universidade brasileira o espaço que tinha fora do país.

Com 66 anos, vive em São Paulo, onde ministrará, ao longo de 2007, um curso no Centro de Extensão Universitária (CEU), um dos raros lugares em que é convidado a ensinar. Para Tolentino, a educação deve buscar desenvolver potencialidades e fugir da imposição de pontos de vista aos educandos. Leia, a seguir, a entrevista concedida a Cassiano José.


O senhor lecionou em três universidades britânicas. Qual o ambiente educacional que encontrou por onde passou?

Lá há uma constante passagem de gente interessantíssima. Eu gostava muito. Fui lá lecionar o teatro de Lope de Vega, Calderón de la Barca, o "siglo de oro" espanhol. Era para ser provisório, mas, como só o provisório dura, fiquei. 


Era um cenário muito diferente do que tínhamos no Brasil?

Um país deste tamanho não é constituído de imbecis. Eu conheci muito poucos, aliás. Quando cheguei à Europa, não me sentia muito diferente do europeu. Falava como eles, às vezes melhor do que eles.


Então, a educação brasileira perdeu o passo nas últimas décadas?

Existe um medo – assim como uma imperdoável ilusão (ela parece ser irmã gêmea da burrice) – que faz com que você queira que as coisas sejam outras, e não aquilo que são. O prejuízo disso é enorme. É a impostura intelectual. Foram os franceses que trouxeram isso para o Brasil. O mundo inteiro fala inglês, menos os franceses. Querem ser outra coisa. Querem ser uma alternativa à Inglaterra, e não são. [Jacques] Derrida ou desce, [Gilles] Deleuze e cia., isso só lá tem. Ninguém leva a Sorbonne a sério, a não ser a Guiana e o Brasil. Não fizeram isso na América Espanhola, em lugar nenhum. O Brasil apostou alto nisso. O preço que a gente pagou é o de uma débâcle moral que nunca houve no país. Há um calculismo contagioso, que tem muito que ver com aquela turma que paparicava Stalin. Essa gente se apequenou. É um apequenamento moral mesmo, particularmente repulsivo nos intelectuais. É uma coisa muito grave, porque isso certamente não é coisa de intelectual, isso não é coisa de homem. Essa turma toda que cala e consente me choca mais do que os que puxam o gatilho ou os que arrastam criança por aí.


É preciso abandonar esse modelo universitário francês?

A América Espanhola diz assim pra França, desde o princípio dos tempos: "A gente também cozinha, a gente tem tudo que vocês têm, menos a empáfia; então, vocês fiquem do lado de lá!". O Brasil não vai fazer isso. A USP é um tumor e é preciso aceitar que isso morra. O último desconstrucionista vai morrer aqui. A nossa esperança é que ninguém mais no mundo sabe francês, ninguém quer saber. Estão se lixando. O francês vai perder a comunicabilidade, que já é mínima.


O que significa perder a comunicabilidade?

Nunca fui objetivo. O resultado do meu trabalho vem da comunicabilidade e do interesse que tenho naquilo que estou fazendo. Na Inglaterra, os alunos acabavam dando mais no couro comigo do que com outros professores. O contato com o outro é essencial. É impossível não se relacionar, não levar em conta a realidade do outro. O outro é o real. Não sou eu nem o que eu quero. Se o seu esforço é todo por não se afastar da realidade, por servi-la, por ceder a ela cada vez mais, fatalmente você vai descobrir que essa realidade é o outro, a pessoa que está na sua frente. Ele existe. O resto é abstração. Você faz o que quiser com a sua imaginação. Mas o outro você não pode imaginar. Ele está sempre a mais ou a menos. Atrapalha. É uma droga. Realmente, seria melhor que não houvesse. Sem o outro, a vida seria muito mais fácil, mais simples, mais narcisística. Só que o outro não pode deixar de ser verdade. Não há alternativa. É por aqui ou nada. Mas tem gente apaixonada pelo nada, porque o nada te dispensa até mesmo de ser você. Aqui no nosso país nós nos acostumamos a atropelar o próximo como se ele nada fosse, em nome desse ou daquele ponto de vista, que na verdade não é outra coisa que não um ponto de vista. Não aceito de modo algum que a verdade seja tida como um ponto de vista pura e simplesmente, mas ela não pode prescindir do ponto de vista. Há um risco educativo em atropelar o próximo, impor uma seletividade. E é gravíssimo isso.


Como se manifesta essa seletividade na cultura brasileira?

Por que eu fui a favor da eleição do Paulo Coelho pra Academia Brasileira de Letras? Porque eu não via nenhuma razão – não via e continuo não vendo – para que ele fosse excluído da seleta audiência que têm José Sarney e Nélida Piñon. Ele é lido pelas empregadinhas? Ele é lido pela turma que lê Caras? E daí? Ela é lida pela turma que não lê coisa nenhuma. O que precisa acabar no Brasil é esse "nós contra eles". Esse é o espírito do rei na barriga que a francesada mandou pra cá.


Qual o papel da escola para o desenvolvimento da comunicabilidade do indivíduo?

Os critérios de uma universidade, de uma casa de saber, por pior que seja, por uspiana que seja, são melhores do que a torre de marfim do sujeito que acha que sabe tudo. Eu constatei quão grave é você ser um autodidata. Você não tem a contestação do outro. O outro será sempre uma criação sua, e não uma barreira ao seu ego. O ego precisa ser conquistado e perdido todo santo dia. Senão, quando você vai ver, está no crime organizado. O crime organizado intelectual é o pior de todos. Eu sinto muita falta tanto do professor [Antônio] Houaiss quanto do professor [Miguel] Reale. Ambos, um praticamente de extrema esquerda, o outro de extrema direita, eram suficientemente humanos para carregar as suas dificuldades e as suas limitações, sem maquiagem.


Os intelectuais brasileiros parecem estar sempre à procura de uma identidade nacional. Nossa educação é prejudicada pelo fato de não havermos chegado ainda a uma idéia precisa sobre quem somos?

Há um excesso de preocupação com isso, até uma certa obsessão. Nossa identidade é feita de dejetos e fragmentos de outras culturas. Por enquanto é isso que nós temos e somos. Algo mais nós ainda não temos, se é que algum dia teremos, se é que importa ter. Há quem diga que o Brasil é um país muito velho. O que é velha no Brasil é essa mania de ter uma idéia muito precisa, muito exata do que nós somos, do que não somos e daquilo que deveríamos ser. Isso pra mim é o auge da velhice, é a velhice total. A ausência dessa identidade clara é uma chance de vivermos o espírito educativo de maneira mais criativa. Só mesmo nós poderíamos produzir um escritor como o Machado [de Assis], por exemplo. Um escritor como o Machado só poderia existir na medida em que fosse afetadamente fragmentário. Nós não temos compromisso com uma única matriz: francesa, inglesa, alemã ou italiana. É a vantagem brasileira. O brasileiro, quando culto, sabe um monte de coisa, conhece literatura francesa, alemã, italiana e tudo mais. Seria preciso que isso fosse mais organizado? Eu não sinto lá muita falta disso. A questão da educação no Brasil parece ser simplesmente, antes de qualquer coisa, aquela que o Cristovam Buarque, em quem eu votei, coloca muito bem: nós não educamos, nós não investimos no elemento humano. Sem educação não vai haver coisa nenhuma.

Nós precisamos repensar as nossas prioridades nesse sentido. Há muita coisa aqui para melhorar. Há defeitos de caráter, de individualismo, que não se justificam. Nós precisaríamos ficar de olho na inconseqüência nacional. A impressão que se tem é que aqui as coisas "ficam por isso mesmo".


Dá para ser um pouco otimista, então?

Eu sou um otimista de mau humor, um otimista ranzinza. O nosso problema educacional, velhíssimo, que nós temos, que sempre tivemos, é este: quando educamos alguém, nós simplesmente tratamos de domesticar essa pessoa, e domesticação não é educação. Para educar, você traz. Na medida do possível, da sua capacidade, você executa um trabalho de demiurgo, de trazer o que está ali. Você não põe nada ali dentro. Não tem por que se meter a enfiar nada na cuca de ninguém. Eu sou contra o formalismo em todos os sentidos. E o formalismo em educação me parece ainda mais grave. Eu não tenho nada a propor, mas acho que, como tudo está mais ou menos por fazer aqui, nada está perdido. Ou pelo menos não está de todo perdido.


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