NOTÍCIA
Valorizar a leitura a partir da literatura e da imersão em outras linguagens artísticas pode ser a saída para estimular o prazer no contato com as letras
“Como sair do fundo do poço?” A partir desta pergunta, da qual pode se depreender um quadro não muito auspicioso sobre o universo abordado — no caso, os hábitos leitores no nosso país — a organizadora da sexta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, Zoara Failla, convidou um grupo de estudiosos sobre o tema para tentar responder à incômoda questão, à qual inclui maneiras de gerar prazer na leitura.
Do convite resultou uma publicação com artigos e um seminário com a participação de vários dos autores, realizado em São Paulo, no Itaú Cultural, em 9 de dezembro. O principal resultado da pesquisa, divulgada em 2024, foi a constatação de que, pela primeira vez desde que o levantamento é realizado, o número de não leitores superou o de leitores (53% a 47%) entre os brasileiros de cinco anos ou mais, alfabetizados ou não.
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Brasil tem mais não leitores do que leitores
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A aferição foi feita em um universo de 5.504 entrevistados de 208 municípios. A pesquisa considera leitor ‘aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro de qualquer gênero, impresso ou digital, nos últimos três meses’.
É importante considerar, ao registrar a queda do número de leitores (de 52% para 47%), como enfatizou José Castilho Marques Neto, editor e ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, algumas circunstâncias atípicas que levaram à piora do quadro entre 2019, data do quinto levantamento, e 2024.
A primeira delas foi a pandemia de Covid-19, com suas consequências de afastamento de estudantes das escolas por períodos de até dois anos e posteriores problemas de saúde mental. A outra foi a descontinuidade de uma série de políticas públicas que vinham, paulatina e vagarosamente, melhorando o quadro da educação no país, interrompidas de forma abrupta durante o governo Bolsonaro (2019-2022), sem falar de todas as rupturas culturais e sociais havidas no período.
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Leitura é abandonada em casa e na escola
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No entanto, a principal impressão ao ouvir o conjunto das análises é que, para além de problemas sempre persistentes, como a pouca valorização docente, um dos maiores gargalos, senão o maior, é uma visão demasiadamente instrumental e empobrecida da leitura, assim como da própria educação.
Há muito vem se colocando ênfase na importância da leitura como caminho intermediário para a aquisição de outros saberes e competências. Mas, no entanto, esse aspecto, por si só, é insuficiente para que se perceba a importância da leitura, em especial a literária.
“Criamos histórias para dar um formato a nossas perguntas; lemos ou ouvimos histórias para compreender o que queremos saber… Uma história, se for boa, suscita em sua audiência tanto o desejo de saber o que acontece em seguida quanto o desejo conflitante de que a história nunca termine: essa dupla ligação explica nosso impulso para contar e ouvir histórias, e mantém viva nossa curiosidade.”
O fragmento acima está no capítulo O que queremos saber, do livro Uma história natural da curiosidade (ed. Companhia das Letras), de Alberto Manguel. Mas casa perfeitamente com a defesa enfática de uma educação com dimensão cultural, feita no seminário por Eliana Yunes, cocriadora da Cátedra Unesco de Leitura no Brasil.

Leitura, sobretudo a literária, vai muito além de um caminho intermediário para a aquisição de outros saberes e competências (Foto: Shutterstock)
“Não entender que a cultura é a matéria-prima da educação é um desastre. Porque você não educa de forma instrucional, passando instrução de como se vai fazer isso ou aquilo. Você educa trazendo para fora, à tona, a potência de ser de uma pessoa. O trazer a potência de ser para fora, ao encontro daquilo que o mundo oferece como possibilidade de criação, alimenta a cultura, que é a matéria-prima da vida. A educação é coadjuvante da cultura”, defende enfaticamente Yunes, também doutora em Linguística e Literatura.
Para ela, é necessária uma profunda transformação curricular nos anos do fundamental 1 (1º ao 5º ano). Sua proposta é que, nestes anos, a escola se concentre em desenvolver as capacidades de ler, argumentar, entender a cidade, expressar-se de forma gráfica e pelas outras linguagens artístico-comunicacionais.
“A leitura no Brasil não está desescolarizada, é um assunto da escola, e não do mundo. Um show tem um roteiro, uma exposição tem um roteiro, um curador; como não entendemos o que está acontecendo ali? Isso tem de ser experimentado, não ensinado como receita, e sim vivido. Viver uma exposição, viver um concerto”, diz ao exemplificar as diferentes leituras que nos fazem compreender o mundo.
As práticas escolares da professora Teresa Cristina Aliperti, docente dos anos iniciais do fundamental na EE Conselheiro Antônio Prado, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, são convergentes com o olhar de Yunes. Mestre e doutora em Educação, Aliperti busca incentivar a leitura e as práticas culturais por meio de uma maior exposição dos alunos a esse universo e à aproximação com as famílias.
A cada uma das cinco reuniões de pais anuais, ela começa com a leitura de uma história que traz uma questão para os pais discutirem e pensarem. Ela explica o trabalho com as crianças, enfatiza as relações da leitura literária com a geografia, a história e as ciências e incentiva que os alunos sempre levem livros para ler em casa, de preferência com os pais.
Trabalhando com o universo literário, ela busca a fruição de leitura, uma dimensão prazerosa e de reflexão sobre as histórias. Quando consegue despertar nas crianças essa curiosidade, muitas vezes também amplia o universo de famílias arrebatadas por manifestações culturais.
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“Num universo de 30 crianças, em torno de 17, 18 famílias vão às reuniões. Mas muitas vezes, se as famílias não vão às reuniões, as próprias crianças levam para casa as práticas vivenciadas na escola”, conta Aliperti.
A professora também costuma visitar museus com os estudantes. “Já aconteceu de eu levar meus alunos de 4º ano à Pinacoteca do estado, e uma criança falar para mim: ‘professora, todo o final de semana eu venho no Parque da Luz com a minha família, mas eu nunca entrei na Pinacoteca’. Isso porque ela não se sentia pertencente àquele espaço. Mas no final de semana seguinte, os pais dela também entraram lá pela primeira vez”, relembra.
E não foi a única experiência iniciática vivida pelos pais em função dos desejos das crianças. Aliperti levou um grupo com vários deles ao teatro do Sesi, num sábado. Muitos deles disseram depois, maravilhados, que nunca tinham ido ao teatro. Isso em se tratando de famílias que vivem ou trabalham no centro de São Paulo.
Outra questão recorrente — e óbvia — é a do acesso aos livros e bibliotecas. Jorge Moisés do Prado, professor da USP de Ribeirão Preto e presidente da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários e Cientistas de Informação, lembra que apenas 31% das escolas públicas brasileiras dispõem de bibliotecas hoje em dia, número que decresceu nos últimos anos.
Essa oferta, assim como a de bibliotecas públicas em geral e comunitárias, é essencial para o acesso ao livro, num país em que a percepção é de que o preço desse insumo cultural é alto. Na realidade, o que o torna mais alto é a pouca escala alcançada pelo setor, pois, como há poucos leitores, o custo unitário é diluído entre um universo pequeno de compradores. Sendo assim, as compras governamentais se tornam essenciais para ampliar as possibilidades de acesso.
Por isso, uma das boas notícias do evento foi a de que as bibliotecas comunitárias, a partir já de 2025, estão integradas ao Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, passando, assim, a receber livros literários comprados pelo MEC em seus editais. Além disso, está em estudos que o PNLD também passe a ter um programa para investimento em formadores de leitura.
Acesso à pesquisa: www.prolivro.org.br.
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