Professor de língua portuguesa e orientador educacional
Publicado em 21/10/2025
Enquanto a educação insiste no trabalho lento, complexo e crítico, os pensadores digitais vendem a promessa de atalhos imediatos
Clarice Lispector, em Os desastres de Sofia, descreveu um professor de ombros contraídos, como se carregasse em silêncio um peso invisível e hercúleo. Carlos Drummond de Andrade, por sua vez, lembrou que “os ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”. Essas duas imagens ficcionais — a primeira marcada pela fragilidade; a segunda, pela resistência — ajudam a compreender a condição atual da docência no Brasil: um ofício em que responsabilidade e carga simbólica se acumulam de forma desproporcional, quase sempre sem o reconhecimento justo e necessário.
Ao professor se exige muito: excelência pedagógica, inovação permanente, domínio de novas tecnologias, sensibilidade para lidar com a diversidade crescente e paciência para gerir conflitos que muitas vezes extrapolam os limites ou as origens da sala de aula. Espera-se que ele seja transmissor de saberes, mediador de relações, cuidador, psicólogo, burocrata e, ainda, mantenha-se entusiasmado diante de turmas cada vez mais numerosas e inclusivas. Em troca, recebe salários que não condizem com a centralidade de sua função — e, muitas vezes, em escolas com bibliotecas desatualizadas, laboratórios inexistentes e recursos básicos negados. Não raro, convive com a invisibilidade social de um esforço que sustenta o país no cotidiano e com a desvalorização pública. Ainda assim, o magistério se sustenta na teimosa persistência de quem acredita que ensinar é mais do que cumprir tarefas: é formar sujeitos capazes de interpretar e corrigir algumas mazelas do mundo.
Sem professores bem formados, quem garantirá a circulação crítica do conhecimento para a meninada? (Foto: Shutterstock)
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Esse descompasso entre o que se exige e o que se oferece tem efeitos concretos e preocupantes. Pesquisas recentes alertam que 40% dos estudantes já não nutrem admiração por seus professores, e que o prestígio da carreira vem caindo vertiginosamente entre os jovens. A projeção é de que, em 2050, o Brasil enfrentará um déficit significativo de docentes. O problema não é apenas educacional: é estrutural, civilizatório, democrático. Uma sociedade que não atrai nem retém seus educadores abdica de seu futuro.
Sem professores bem formados, quem garantirá a circulação crítica do conhecimento para a meninada? Quem ensinará a desconfiar das aparências, a ler para além das manchetes, a debater sem ódio e com profundidade?
A esse quadro se soma um contexto político e cultural que agrava o peso sobre os ombros docentes: a voz crítica e política do professor — talvez sua ferramenta basilar — vem sendo sistematicamente contestada, tolhida, vigiada. De um lado, setores conservadores buscam controlar cada palavra em nome de uma suposta ‘neutralidade’ que, na prática, sufoca a reflexão. De outro, há correntes progressistas que exigem adesões automáticas, transformando o ato de ensinar em prova de alinhamento ideológico. O resultado é a mesma limitação: um professor obrigado a justificar cada gesto, como se ensinar fosse, em si, um ato suspeito ou de barganha.
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Em paralelo, cresce a concorrência desleal com influenciadores digitais e coaches que, em vídeos de poucos minutos, oferecem fórmulas fáceis de sucesso e de prosperidade. Enquanto a educação insiste no trabalho lento, complexo e crítico, os pensadores digitais vendem a promessa de atalhos imediatos.
No mercado da atenção, que recompensa a superficialidade monetizada, a fala docente parece deslocada e marginal. Mas é justamente essa insistência na complexidade, no esforço da leitura atenta, na escuta paciente, que revela o valor inegociável do professor: ele não compete com a velocidade da rede e, ao contrário, oferece a profundidade que ela recusa.
Vivemos em tempos de redes sociais virulentas e hostis, de manipulação de imagens e verdades inventadas, de polarização crescente e obtusa e de analfabetismo funcional que se expande silenciosamente. Nesse cenário caótico, a tarefa do professor ganha ainda mais relevância: ele é um dos poucos agentes sociais capazes de reintroduzir a dúvida, de cultivar a consciência da coletividade e de indicar que o conhecimento não se reduz a slogans e a cortes de Instagram. O espaço escolar, mesmo com todas as limitações e precariedades, continua sendo um dos últimos lugares em que é possível aprender a conviver com a diferença e com o pensamento analítico, a negociar sentidos e a arquitetar futuros mais justos.
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Por isso, homenagear os professores não é ato protocolar, nem gesto meramente simbólico. É uma exigência civilizatória e política. Significa reivindicar condições concretas de valorização: salários compatíveis com a importância da carreira, ambientes escolares equipados, formação continuada em tempo adequado que dialogue com os desafios atuais e, sobretudo, a proteção inegociável da liberdade de cátedra. Mais do que agradecê-los, trata-se de compartilhar o peso que hoje recai desproporcionalmente sobre apenas os seus ombros.
Os ombros contraídos lamentados por Clarice e os ombros universais sugeridos por Drummond se encontram, todos os dias, nos professores que entram em sala de aula. Sustentam o peso de um país em formação e, ao mesmo tempo, a esperança de que esse país seja mais razoável, igualitário, mais consciente de sua coletividade, menos insano e injusto. O futuro do Brasil repousa nesses ombros — contraídos, teimosos, cansados, mas resistentes porque ainda parecem dispostos a não vergar. Nossa homenagem, portanto, não deve ser apenas palavra terna: deve ser compromisso político, republicano e transformador.
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