É do povo Maxacali, filósofa, educadora, aprendiz de parteira. Lecionou por 12 anos em uma escola indígena de São Paulo. É representante do Núcleo de Educação Indígena e fundadora do Instituto Maracá. Coordena o projeto Escolas Vivas.
Publicado em 01/09/2025
Sinto que é necessário nos reconectarmos com os sinais da vida selvagem, que nos mostram exatamente o sentido de nossa existência
A natureza dá sentido à vida e, nela, tudo tem seu equilíbrio. É como uma imensa teia, em que tudo está interligado — um organismo vivo. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos tem um significado para a nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinais de que algo está para acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento. Enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza, que, com sua delicadeza e sabedoria, vão nos guiando e nos ensinando — como o Bem Viver, que em Guarani se fala Teko Porã, e é um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande teia na qual vivemos em harmonia e respeito.
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Carlos Papá fala que, desde criança, os Guarani aprendem os códigos para poderem caminhar e viver na floresta:
“Eu andava pelas florestas para poder decifrar os códigos, porque, a cada dia, quando se passa na mesma floresta, mesmo sendo um lugar que já passou, eles já mudaram. Neste lugar não tinha formiga, mas no outro dia tem formigas ou um besouro. Então, você tem que analisar… As paisagens mudam, né?
Por exemplo: você faz um quadro, pinta uma árvore e pensa: Acho que vou fazer uma lagarta na folha ou uma borboleta voando, mas só amanhã, hoje não vai dar, porque estou cansado ou com sono. Deixa-se tudo pra amanhã.
A mesma coisa é com a natureza. Quando você está num lugar, fica em silêncio, talvez não tenha pássaro ou água escorrendo. Você olha, fixa bem o jeito que era e retorna pra casa. No dia seguinte, ou três ou quatro dias depois, volta ao mesmo lugar, analisa tudo. Está diferente, porque talvez tenha chovido ou agora tenha um pássaro, um tucano ou um grilo. Ou talvez tenha uma borboleta voando. Então mudou a paisagem, não é a mesma coisa.
Eu fazia essa leitura: por que mudou? A luz do sol que bateu este dia estava clara. Depois de três dias, a luz não era a mesma coisa porque o sol estava meio escondido, as nuvens estavam baixas. Então, as coisas mudam. E aí você vê o grilo namorando e fixa aquele tempo. No outro dia, ao voltar ao mesmo lugar, o grilo não está mais lá e o tempo está maravilhoso.
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Comecei a perceber os códigos das coisas que ali estão. Quer dizer, se o tempo está ruim, o grilo está ali de forma ao contrário, oposta. Esses são os códigos que temos para perceber que o tempo amanhã vai mudar, se continuará igual, se vai fazer frio ou chover. O grilo parece uma bússola que tem uma indicação… Então, o grilo está se preparando ‘pra ir pra cima’, porque amanhã haverá um tempo bom e é o jeito dele comer uma folha nova. Agora, se está assim, é porque no dia seguinte vai fazer muito frio e ele está procurando um lugar para se esconder. Em cima é muita corrente de ar frio e embaixo também porque o chão é muito frio. Aí ele fica meio que no meio, para que não tenha uma corrente de ar frio.
Tudo isso a gente tem que estar percebendo, decifrando os códigos para saber caminhar e viver bem.”
Séculos e séculos da razão humana ignoraram a sabedoria dos códigos da floresta (Foto: Shutterstock)
Aos poucos vamos crescendo e aprendendo os códigos que nos revelam os caminhos que vamos seguir. Porém, na escola, somos direcionados a aprender sinais e códigos que são desconectados da vida. Um monte de teorias de letras e números que acabam nos afastando do sentido real e natural dessa convivência que nos é ancestral dentro da memória que habita em nosso interior.
Quais os códigos que conseguimos decifrar hoje? Quem alcança o entendimento das mensagens que trazem os Tupã, deuses do trovão? Quem entende os sinais das Jataí, as abelhinhas sensíveis nativas da Nhe’ëry? Quem dialoga com as formigas quando estão num longo carreirão carregando folhas, muitas vezes maiores que elas mesmas, em direção a um lugar seguro? Quem sente e observa o caminhar das nuvens? Os sopros dos ventos? As ondas do mar que vão e vêm num equilíbrio muito próprio delas?
Sinto que é necessário nos reconectarmos com esses sinais da vida selvagem, que nos mostram exatamente o sentido de nossa existência. Séculos e séculos da razão humana ignoraram a sabedoria dos códigos da floresta. Convoco e convido a todos e todas a se tornarem selvagens, se permitirem sentir, escutar e enxergar esses sinais que todos os dias pulsam ao nosso redor.
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