NOTÍCIA
Nas últimas três décadas, a educação brasileira não chegou aonde gostaríamos. Mas caminhou bem mais do que conseguimos enxergar olhando apenas de relance. Em seus 30 anos, a revista Educação acompanhou essas mudanças mês a mês, em suas edições
Os ventos do país haviam mudado. Começava-se a respirar uma atmosfera mais otimista depois dos tempos de turbulência política com o impeachment de Fernando Collor, primeiro presidente eleito pelo voto popular em 29 anos, e de caos econômico, com seguidos naufrágios de planos contra a inflação. Em 1994, o Brasil fora campeão do mundo de futebol, o plano Real era bem-sucedido no combate à inflação e tínhamos um novo presidente da República, um sociólogo com uma vida dedicada à reflexão pública sobre os rumos do país. Ou seja, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência, os ventos sopravam a favor e havia a esperança de uma grande transformação na educação brasileira, afinal, tínhamos no leme um intelectual com consciência da importância do setor para a vida do país.
Hoje, pouco mais de 30 anos depois do início do governo FHC, pode-se considerar que, naquele momento, começamos a aceleração de um processo de descoberta de Brasis até então relegados ao silêncio nas margens da sociedade. Esses Brasis e brasileiros começaram a ter rostos visíveis com a promulgação da Constituição de 1988, que estendeu direitos a toda a população, inclusive na educação.
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Para o ex-ministro da Educação Henrique Paim, que ficou à frente do Ministério da Educação (MEC) em 2014, a educação brasileira teve um despertar tardio, cuja primeira alavanca foi justamente o marco jurídico institucional presente no Capítulo III da Constituição Federal.
“Ali fica claro que a educação pública e gratuita é responsabilidade do Estado e direito do cidadão, com a obrigatoriedade da oferta para crianças dos sete aos 14 anos. A partir daí, houve uma definição mais detalhada das responsabilidades dos entes federativos, com a gestão compartilhada entre União, estados e municípios”, lembra Paim, hoje à frente da FGV DGPE (Diretoria de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas).
Alfabetização permanece sendo um dos maiores problemas da educação brasileira (Foto: Shutterstock)
Ainda que uma nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação tenha surgido apenas oito anos depois da Constituição, em 1996, os processos de mobilização social já moviam estruturas até então estanques. Antes ainda do governo FHC, em outubro de 1994, o antigo Conselho Federal de Educação fora extinto sob a acusação de ter virado ‘um balcão de negócios’. Esse órgão normativo até então todo-poderoso se transformaria no Conselho Nacional de Educação, com novas atribuições e menos poder.
No mesmo ano da LDB, o governo aprovou também a lei do Fundef, o fundo nacional destinado a financiar o ensino fundamental, a etapa obrigatória da educação nesse período. Com o Fundef, que começou a funcionar em 1998, o ensino fundamental atingiu a universalização perto da virada do século.
Anos depois, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, tanto a obrigatoriedade como o fundo para o financiamento ganharam maior abrangência. Em 2006, foi aprovado o Fundeb, contemplando verbas também para a educação infantil e para o ensino médio, que começariam a ser distribuídas no ano seguinte. Em 2009, uma mudança na Constituição aumentou o tempo de obrigatoriedade da escolaridade, que passou a ser dos quatro aos 17 anos.
Para o atual diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC, Alexsandro Santos, ainda que reste muito a caminhar, a educação brasileira progrediu bastante nas últimas três décadas. Ele divide sua análise em três grandes frentes, cujos resultados são desiguais entre si, assim como a dificuldade de respostas.
Para o gestor, esses desafios se referem à democratização do acesso, à conquista de padrões de qualidade e à equidade. O primeiro quesito, o acesso, foi onde fomos mais bem-sucedidos. No início dos anos 90, apenas 81% dos alunos de sete a 14 anos estavam na escola, contra cerca de 96% ao final da mesma década. No ensino médio, cuja cobertura então alcançava 37% dos alunos na idade certa, hoje as escolas abrigam 70% dos estudantes dessa faixa etária (15 a 18 anos).
Na educação infantil, apesar de as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação não terem sido plenamente atingidas, os resultados não ficaram tão distantes. Na etapa de quatro a cinco anos, 94,6% das crianças estavam na escola em 2024 (a meta era a universalização); de zero a três anos, 41,2% frequentavam creches, quando o objetivo era chegar aos 50%.
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“Em termos de qualidade, houve um expressivo crescimento dos professores com formação adequada. No ensino fundamental, há 30 anos, eram apenas 43%. Hoje são 95% com formação superior, praticamente 100% no fundamental 2. Na primeira etapa ainda há alguns remanescentes do curso normal”, frisa o diretor do MEC. Em termos salariais, a diferença de ganhos em relação a outras profissões para quem tem a mesma formação também foi bastante reduzida, estando na casa dos 15% menos. Se esses indicadores não se refletem diretamente na qualidade final da educação, aferida pela formação do educando, servem para mostrar que foi percorrido um caminho que, espera-se, desemboque com o tempo neste objetivo final.
O terceiro ponto, a equidade para os diferentes níveis sociais, Santos avalia que é aquele em que estamos mais distantes do ideal. “Ainda assim, a diferença entre o quintil (os 20%) mais pobre caiu bastante nos anos iniciais do fundamental. Nos anos finais, é um pouco maior e mais expressiva no ensino médio. Ou seja, as velocidades entre essas três questões — acesso, qualidade e equidade — são distintas. Talvez, se olharmos para a fotografia deste momento, pensemos que ainda estamos distantes. Mas, se olharmos o filme dos últimos 30 anos, constataremos que evoluímos bastante em muitos pontos”, pondera.
Alexsandro Santos, diretor do MEC: é preciso um olhar
ao longo do tempo para ver o quanto evoluímos (Foto: divulgação)
Um dos pontos em que a reforma do ensino médio de 2017, revertida parcialmente no atual governo, se mostrou pouco viável foi a precariedade de muitas escolas em relação ao que se propunha, como no caso de laboratórios, por exemplo. Mesmo em estados ricos como São Paulo há escolas funcionando em péssimas condições. Porém, algumas transformações merecem ser ressaltadas. Uma delas é o transporte escolar, melhorando o acesso em cidades e na zona rural.
“Em 10 anos, o programa Caminho da Escola fez chegar aos municípios 46 mil veículos [vans], num grande processo de qualificação da frota”, lembra Henrique Paim, que também foi presidente do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) entre 2004 e 2006, órgão responsável pelo programa.
Outro aspecto lembrado por ele é a criação, em 2007, durante a gestão do ministro Fernando Haddad, do PAR (Plano de Ações Articuladas). Até a introdução desse mecanismo, a distribuição dos recursos discricionários pelo MEC era feita não só em função das demandas que chegavam à pasta, mas também pelo poder de barganha e influência política.
Para o ex-ministro Henrique Paim, a Constituição de 1988 significou o início de uma grande transformação na educação (Foto: divulgação)
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“Com o PAR, os municípios e estados passaram a ter de apresentar um plano, calcado em um diagnóstico de suas necessidades, e as demandas foram qualificadas seguindo uma orientação técnica, melhorando a política pública”, lembra Paim.
A criação do PAR ocorreu no mesmo ano da introdução do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), formulado pelo então presidente do Inep, Reynaldo Fernandes. O intuito foi o de instituir um indicador de compreensão simples que permitisse à sociedade acompanhar e cobrar escolas e redes em função dos resultados apresentados. Composto pela nota dos alunos em uma avaliação de larga escala (a Prova Brasil), multiplicada pela aprovação dos estudantes (indicador de fluxo escolar), o Ideb chegou trazendo metas para cada rede e sistema escolar, propondo que se olhasse para um arco de 15 anos (2007 a 2022).
Em sua análise, Henrique Paim aponta duas alavancas para o desenvolvimento da educação. A primeira, já mencionada, foram as transformações jurídico-institucionais. A segunda, diz ele, é a gestão voltada para resultados. Sua origem — ainda não com essa perspectiva tão clara — é a introdução do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) em 1990. Tratava-se então apenas de uma avaliação diagnóstica dos sistemas educacionais brasileiros, assim como anos depois conheceríamos o Enem (ensino médio) e o Provão (ensino superior).
Em sintonia com tendências internacionais, os processos de avaliação de larga escala ganharam força como grandes balizadores de políticas públicas, tendo como axioma a necessidade de medir a aprendizagem dos estudantes.
Sutilmente, isso vai marcando uma transformação na educação, no Brasil e no mundo: aprender passa a ser mais importante do que ser educado em sentido mais amplo, o da formação do sujeito para a vida social, para além de suas faculdades para o trabalho.
Em 1997, com a introdução da Teoria de Resposta ao Item e o início da aplicação de questionários sobre o contexto da educação, a avaliação passou a permitir comparabilidade e ganhou mais robustez na definição de políticas públicas. Ainda assim, as provas permaneciam sendo amostrais.
Oito anos depois, com a Prova Brasil, a avaliação passava a ser censitária no ensino fundamental, o que significou uma antessala para a introdução posterior do Ideb, de suas metas e da proposta de monitoramento do desempenho pela sociedade.
Houve reações diametralmente opostas. Enquanto o economista Gustavo Ioschpe pregava que as famílias fossem à porta das escolas para cobrar os professores onde houvesse maus resultados, a professora Magda Soares, fundadora do Ceale (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita) da UFMG, alertava para o fato de que medidas similares haviam provocado, na Inglaterra e nos EUA, desvios educacionais como fraudes e direcionamento indevido do currículo.
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Hoje, quase 20 anos depois da introdução do Ideb, o indicador demanda atualizações. Especialistas em avaliação, como Francisco Soares, ex-presidente do Inep, gostariam de ver outras variáveis incorporadas ao índice, questões que pudessem revelar aspectos sensíveis quanto à equidade, por exemplo. Outros, como Ernesto Martins Faria, do Iede, postulam que a prova do Saeb ganhe mais complexidade, trazendo questões que exijam conhecimento de mais do que uma habilidade.
Em uma etapa-chave da educação, a alfabetização, o Saeb aplicado aos alunos do 2º ano do ensino fundamental insiste em mostrar resultados insatisfatórios. O que indica que a alfabetização permanece sendo um dos maiores problemas da educação brasileira.
Para Alexsandro Santos, do MEC, resolver essa questão demanda atuação em três níveis: no plano político, “as lideranças têm de ser obcecadas na priorização da alfabetização”, com as secretarias investindo em formação, materiais e identificação das falhas processuais; nas escolas, um olhar focado para alfabetização, aliado às condições para que professores tenham boa gestão de sala de aula. No caso dos docentes, precisam se debruçar sobre a aquisição de ferramentas técnicas de alfabetização, conhecimento de métodos variados, de modo a estarem aptos para aplicar soluções didáticas de acordo com as necessidades contextuais. “Tudo isso com corresponsabilização de todos”, completa.
Tereza Perez, diretora da Roda Educativa (antigo Cedac), organização da sociedade civil que ministra cursos e formações Brasil afora, acredita que a avaliação, para o bem e para o mal, nunca foi tão valorizada como nestes 30 anos.
“É legítimo e necessário. Mas há um excesso. Há pouco tempo, em contato com uma professora, ela nos dizia que o 2º semestre em sua escola teria apenas 47 dias letivos inteiros, pois, entre preparo e realização de avaliações de quatro níveis (interna, do município, do estado e federal) esse seria o tempo que restaria para trabalhar”, conta Tereza, para quem essa cultura está por demais impregnada.
O problema, diz ela, é avaliar sem convicção, sem saber o motivo. “É uma lógica de concorrência permanente, entre municípios, estados, países. Todos são avaliados, pelo que fazem e pelo que não fazem”, sentencia.
Essa espécie de fixação é causadora de uma falta de senso pedagógico mais profundo, que se perde em meio a um conjunto de padronizações. “A prática pedagógica deve trazer também um conjunto de valores. Só há aprendizagem se há disponibilidade para aprender. É necessário mobilizar a capacidade de pensar, refletir, e não apenas a reprodução”, alerta a educadora.
Não que ela não veja avanços. Em especial na gestão atual, diz que as políticas para as juventudes estão mais orgânicas e que os processos de escuta dos jovens, em especial com o Programa Escola das Adolescências, têm sido muito importantes. E que o Vaar, mecanismo implantado com a mudança do Fundeb, tem ajudado não só na equidade, mas em questões como a obrigatoriedade de concurso para a seleção de diretores escolares.
O alerta da educadora Tereza Perez: educar é muito mais do que responder a testes padronizados (Foto: divulgação)
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