NOTÍCIA
Para o professor francês, a educação está intimamente ligada aos conceitos de hominização e humanização
Por Rubens Harb Bollos*, da Associação Brasileira de Medicina Personalizada e de Precisão | Vivemos em uma era de intensas transformações e desafios globais. O avanço acelerado das tecnologias, a polarização política e o crescimento das desigualdades sociais não apenas moldam nossa realidade, mas também influenciam nossas escolhas e impactam diretamente nossa evolução e, consequentemente, a educação.
Esse cenário de crises, instabilidades e dissonâncias contaminou famílias, comunidades, locais de trabalho e consequentemente, a escola. Ou seja, o que antes era um espaço de trocas, aprendizados e evolução social agora virou palco de desentendimentos, retrocesso, estagnação e predação humana. Na época da barbárie, que ataca todas as idades e classes sociais, ninguém fica de fora.
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E como remediar esta obsolescência humana? Agora, mais do que nunca e estrategicamente, a escola precisa se firmar como um pilar essencial para a construção de valores humanitários e de resistência à barbárie, pois ela é a conexão e a mediação para todos: ao educarmos os filhos, a nova geração, com o antídoto à barbárie na escola, eles terão condições de vacinar seus pais, avós, tios, colegas e nossos governantes.
O termo tem origem no grego barbaros, usado pelos antigos gregos para designar aqueles que não falavam sua língua e, por isso, eram considerados estrangeiros e incivilizados, ou seja, a intolerância ao que não é conhecido ou próprio já gerava um estigma. Com o tempo, a palavra passou a ser associada à ausência de cultura e civilização, adquirindo um tom pejorativo.
Na filosofia, pensadores como Theodor Adorno e Max Horkheimer relacionaram a barbárie à negação da razão e à reprodução de sistemas de opressão. Já nas ciências sociais, a barbárie se manifesta na perpetuação das desigualdades e violências estruturais que desumanizam indivíduos e grupos sociais.
Na psicologia, pode ser compreendida como um processo de desumanização que afeta as relações interpessoais e institucionais. Na medicina e na saúde pública, a barbárie se reflete na exclusão de populações vulneráveis ao acesso a direitos básicos, como saúde e educação, e à pré-determinação do destino de suas vidas, já definidas pelo poder de compra.
No contexto educacional, a barbárie se expressa de diversas formas, desde a exclusão de estudantes vulneráveis até a naturalização da violência dentro das escolas. Um exemplo concreto é o alto índice de evasão escolar entre jovens de comunidades marginalizadas, muitas vezes provocada por um ambiente que não acolhe suas realidades e desafios. A falta de políticas públicas eficazes e de práticas pedagógicas inclusivas intensifica a desumanização desses alunos, tornando urgente a necessidade de uma educação que resista a esses processos e promova a humanização.
Diante desse cenário, os números falam por si. Segundo a Unesco, mais de 244 milhões de crianças e jovens no mundo estão fora da escola, e as populações mais vulneráveis são as mais afetadas. Um estudo da Oxfam (em português, Comitê de Oxford para Alívio da Fome), mostra que a desigualdade educacional perpetua ciclos de pobreza e exclusão social.
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No Brasil, dados do IBGE revelam que cerca de 40% dos jovens entre 15 e 29 anos não concluíram a educação básica, um reflexo do papel central da escola na transformação social. Entre 2015 e 2021, foram registrados mais de 202 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, sendo que 70,9% dessas agressões ocorreram dentro de casa. Além disso, 23% dos estudantes relataram ter sido vítimas de bullying, cyberbullying, muitas vezes devido à aparência do corpo, do rosto ou por questões raciais.
Diante dessa realidade, refletir sobre a relação entre educação e barbárie torna-se essencial. De que maneira a educação pode atuar para evitar que essas estatísticas se repitam? Como ela pode contribuir para reverter esses números? Quais estratégias podem fortalecer a inclusão e a equidade no ambiente escolar? Como garantir que a escola cumpra seu papel como espaço de humanização? De que forma os professores podem transformar o conhecimento em uma ferramenta de resistência? Essas são questões fundamentais e que exigem respostas urgentes. Antes, proponho a reflexão.
Bernard Charlot vê a educação como um motor de transformação civilizatória (Foto: Shutterstock)
A educação é nossa maior defesa contra a barbárie. Mais do que transmitir conhecimento, ela fortalece valores como ética, pensamento crítico e inclusão. Como destacou o já mencionado Theodor Adorno, filósofo alemão da Escola de Frankfurt, a educação deve formar indivíduos críticos e conscientes, capazes de resistir à barbárie e transformar a sociedade. Entre os pensadores que mais influenciaram essa discussão, além de Adorno, Bernard Charlot, francês, e Paulo Freire, brasileiro, nos ajudam a compreender como o ensino pode ser tanto um instrumento de reprodução quanto de resistência à barbárie.
Adorno alertou para a necessidade de uma educação crítica que evitasse a repetição de tragédias históricas, como o Holocausto. Freire valorizou os saberes comunitários e enxergava a educação como um meio de libertação, promovendo o diálogo e a conscientização como forças transformadoras. E Charlot, por sua vez, concentra-se na relação com o saber, analisando como a educação pode humanizar ao criar vínculos significativos entre o aluno, o conhecimento e sua realidade social.
Essa perspectiva tornou-se ainda mais clara para mim quando tive o privilégio de conhecer Bernard Charlot e participar de uma de suas palestras promovidas pelo Projeto Devir, em São Paulo, em 2025. Um senhor experiente, simpático e com uma alma profundamente brasileira, que escolheu o Brasil para viver e criar raízes. Como sociólogo e educador, dedicou-se a estudar a relação entre ensino, aprendizado e sociedade, defendendo que a educação reflete as desigualdades sociais, mas também pode ser um caminho para transformações significativas.
Sua reflexão sobre educação está intimamente ligada aos conceitos de hominização e humanização. A hominização diz respeito ao desenvolvimento biológico e cultural do indivíduo, enquanto a humanização envolve sua inserção na cultura, na ética e na construção de sentidos para sua existência.
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O tema dele é quase genético, eu diria, e também com bases na biologia evolutiva e a influência do ambiente no sucesso da raça humana sobre todas as outras espécies. Charlot distingue hominização de humanização: enquanto a primeira se refere ao fato de nascermos como seres humanos, a segunda é um processo contínuo de transformação. Para ele, humanizar é permitir os intercâmbios essenciais que a escola deveria proporcionar, possibilitando que o que é nato no ser humano se desenvolva em Humanidade. Não basta nascer homem, é preciso tornar-se humano — evoluindo além de si mesmo, em prol da vida e da coletividade. Isso é a Humanização do Ser Humano – com maiúsculas, merecidamente.
Para Bernard Charlot, a barbárie acontece sempre que os indivíduos são reduzidos a meros objetos, privados de dignidade, direitos e autonomia. Nesse contexto, a educação deve ser um antídoto contra essa desumanização, promovendo o pensamento crítico, a empatia e a construção de uma sociedade mais justa.
Estudando sistemas educacionais em contextos de desigualdade, Charlot identificou a barbárie na educação como uma realidade que se manifesta de diversas formas.
Aulas desprovidas de sentido, que não dialogam com a vida dos estudantes, tornam o aprendizado mecânico e distante. A desigualdade de acesso e de qualidade cria barreiras sociais que impedem os mais vulneráveis de exercerem plenamente seu direito ao conhecimento. A violência escolar, reflexo da violência estrutural da sociedade, torna o ambiente hostil e desmotivador tanto para alunos quanto para professores.
Mas como educar em tempos de barbárie? Para Charlot, a educação é um instrumento fundamental para resistir a tudo que nos desumaniza e fortalecer a cidadania. Quando o ensino tem significado para o aluno, quando os espaços escolares se tornam ambientes acolhedores e quando a autonomia crítica é incentivada, a transformação acontece.
Projetos pedagógicos que conectam o aprendizado à realidade dos alunos, como aqueles em que estudantes revitalizam espaços públicos com base em conceitos de sustentabilidade e cidadania, mostram como o conhecimento pode ter impacto concreto na sociedade. Além disso, práticas de mediação de conflitos, como os círculos restaurativos — diálogos estruturados para resolver conflitos e restaurar relações —, têm demonstrado resultados positivos na redução da violência escolar e no fortalecimento do diálogo.
Bernard Charlot vê a educação como um motor de transformação civilizatória. Afinal, a barbárie não é apenas a ausência de civilização, mas a negação da humanidade. Educar é afirmar nossa essência e fortalecer a construção de uma sociedade mais justa. Cada professor que ensina com significado contribui para essa transformação. Para Charlot, a educação é, acima de tudo, um ato de resistência — e, nesse sentido, o professor e todos nós, adultos, somos parte fundamental dessa responsabilidade.
Mas a grande questão que permanece é: estamos utilizando a educação como um instrumento para humanizar e transformar, ou estamos permitindo que ela perpetue desigualdades e exclusão?
Eu acredito na educação como prevenção e antídoto natural para nossa evolução e sanidade mental. E, como pai e cidadão, desejo que meus filhos sejam melhores, mais humanos e capazes de fazer diferença no mundo. E você, como está conduzindo seus filhos?
*Rubens Harb Bollos é médico, pesquisador, mentor e palestrante. Mestre e doutor (Ph.D) em ciências da saúde pela Unifesp e pós-doutor em biologia do desenvolvimento (USP/ICB). Pesquisador nas áreas de imunologia, epigenética, salutogênese e cultura de paz com foco no estudo de indicadores de êxito em saúde. É presidente-fundador da ABMPP.org (Associação Brasileira de Medicina Personalizada e de Precisão).
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