NOTÍCIA

Olhar pedagógico

Autor

Sérgio Rizzo

Publicado em 10/01/2025

Premiação a Fernanda Torres serve para o Brasil conhecer mais do Brasil

Afinal, a produção cultural brasileira é combatida dentro do próprio país e desconhecida por uma imensa parcela da população

Por mais paradoxal que talvez pareça, a calorosa recepção internacional ao filme Ainda estou aqui — na qual se incluem o prêmio de roteiro no Festival de Veneza, Itália, em setembro, e agora o Globo de Ouro de melhor atriz entregue em Los Angeles, EUA, a Fernanda Torres — tem mais relevância interna do que externa. Combatida dentro do próprio país e desconhecida por uma imensa parcela da população, a produção cultural brasileira ganha um pouco mais de força entre nós sempre que o reconhecimento vem de fora, como uma espécie de chancela de qualidade.

O fenômeno tem a ver com o célebre ’complexo de vira-lata’ de que falou o escritor Nelson Rodrigues — segundo ele, a “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Sabemos que muita gente que desconhece o cinema brasileiro gosta de falar mal dele, ignorando por completo as centenas de filmes realizados todos os anos, na ficção e no documentário, de curta e longa-metragem, exibidos nos cinemas comerciais, em espaços culturais e nas plataformas de streaming.

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Algo semelhante já havia ocorrido quando a animação O menino o mundo, dirigida por Alê Abreu e produzida em um sobrado da Vila Madalena, em São Paulo, foi indicada ao Oscar, ao lado de Divertidamente, do conglomerado industrial Pixar-Disney, que custou cerca de 200 vezes mais (e que seria o vencedor). 

Quando saiu a indicação para o prêmio da Academia de Hollywood, O menino e o mundo tinha sido mais visto em Paris, França, do que no Brasil. Foi a oportunidade para que muitos brasileiros ‘descobrissem’ o filme e a qualidade do trabalho de nossos animadores.

(Interrompo o texto para convidar o leitor a rápidas checagens de repertório relacionadas aos três parágrafos anteriores: viu A marvada carne, filme que revelou Fernanda Torres, ou Eu sei que vou te amar, que valeu a ela o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 1986, aos 20 anos de idade? Conhece Terra estrangeira, O primeiro dia e Linha de passe, filmes anteriores de Walter Salles, diretor de Ainda estou aqui? Quantas peças de Nelson Rodrigues viu encenadas no palco? Leu alguma de suas coletâneas de contos e crônicas? Assistiu a O menino e o mundo? Conhece mais alguma produção brasileira de animação?)

 

Fernanda Torres

Fernanda Torres no filme ‘Ainda estou aqui’ (Foto: divulgação)

Cinema brasileiro em diálogo 

Logo, êxitos internacionais como os de Fernanda Torres e de Ainda estou aqui nos oferecem uma extraordinária janela de oportunidade, muito valiosa para educadores: ‘surfar’ na onda de popularidade de um filme para apresentar o cinema brasileiro de ontem e de hoje a quem talvez não o conheça, ou conheça pouco, e tenha provavelmente ideias distorcidas sobre ele. Que tal lembrar que Fernanda Torres pertence a uma linhagem de grandes atrizes brasileiras que fizeram história no cinema, como Carmen Santos, Eliane Lage, Cacilda Becker, Glauce Rocha e, claro, Fernanda Montenegro? 

Ou lembrar que, antes de Walter Salles e de outras centenas de cineastas brasileiros hoje em atividade, houve Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro, Alberto Cavalcanti, Carmen Santos (sim: além de atriz, ela foi também produtora, diretora e roteirista), Luiz Sérgio Person, Glauber Rocha, Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho? Ou, ainda, lembrar que o cinema brasileiro dos anos 1960 cansou de conquistar prêmios internacionais ainda mais importantes do que os recebidos nos últimos meses (e possivelmente nos próximos) por Ainda estou aqui?

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O time de Walter Salles funciona também como lembrete das inúmeras possibilidades de conexões e de associações que o cinema brasileiro nos oferece. A partir de um filme, é possível falar de outras dimensões da produção cultural, como a literatura (o roteiro se inspira em livro de Marcelo Rubens Paiva) e a música (diversas canções são usadas para ambientar a trama nas décadas cobertas pela narrativa), e outros campos do conhecimento — notadamente, neste caso, o da história, com a representação ficcional de personagens e eventos verídicos que contribuem para o melhor entendimento de processos históricos fundamentais para o Brasil de hoje.

Por falar na atualidade turbulenta que nos cerca, Ainda estou aqui permite explorar também algo que escapa à maior parte da população e que se reveste de caráter estratégico na crise do trabalho no século 21: a importância de economia da cultura. Ela gera empregos diretos e indiretos, movimenta diversos setores (o público que assistiu ao filme nos cinemas, e que continua a crescer, já equivale neste momento a mais do que o dobro do número total de torcedores levados pelo Flamengo ao Maracanã em todo o Campeonato Brasileiro de 2024) e, claro, tem valor incalculável para a autoestima do país. De qualquer país, como bem sabem os EUA.

Na linguagem da sociedade hiperconectada em que vivemos, o ‘engajamento’ provocado pelo filme nas redes sociais após o Globo de Ouro de Fernanda Torres só ganhará significado especial se vier a provocar um efeito residual na procura pelo cinema brasileiro e na compreensão do seu papel para a melhor compreensão de quem somos. Está ao alcance de cada um de nós contribuir para que essa roda continue a girar depois da tempestade de posts e likes.

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