Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 21/05/2024
Diminuição das políticas públicas para os jovens nos últimos dois anos foi o contrário do que seria lógico para um país que parece exaltá-los culturalmente
Quando as primeiras rugas surgiram na fronte de Gisele Bündchen, a modelo passou a surgir na mídia brasileira exclusivamente por conta de sua separação conjugal — ou porque foi parada numa blitz policial. A eterna ‘promessa de felicidade’ agora interessa mais pelo que tem de mundana, do que por sua então beleza juvenil. E assim, o orgulho nacional — um espelho narcísico — vai migrando de persona em persona, conforme essas envelhecem.
Desde a garota que vem e que passa até o rebolado da Anitta, o país sempre se gabou de sua juventude. Essa imagem é mais forte no exterior que o próprio Cristo Redentor. Quando se pensa em Brasil, logo é possível sentir uma brisa fresca e fugaz, um corpo apolíneo e uma energia pulsante de vida. Esse olhar é altamente seletivo e um tanto quanto racista — ainda fruto da construção da latinidade sexual de Hollywood da década de 1950.
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Entre as estrelas de novelas da Rede Globo, dentre elas Malhação, que durou incríveis 27 temporadas, até os influenciadores digitais que arrepiam os cabelos das famílias, é a faixa jovem que mais marca presença na mídia, como produtora e também consumidora. Durante algumas décadas sem regulamentação adequada de publicidade, fabricantes de cigarro e cerveja encheram os bolsos patrocinando programas de televisão, festivais de música e até esportistas profissionais.
Recente, pesquisa realizada pelo banco Itáu por meio da análise do uso de transferências via Pix mostra a força da geração Z no consumo online, sobretudo em apps de alimentação e transporte — é esse consumo que faz brilhar o olho do mercado.
Hoje são 35 milhões de jovens entre 14 e 24 anos no país. Mas foram 50, 60, 70 milhões. De fato, nossa pirâmide etária foi bem mais cheia justamente na faixa correspondente à população menor que 30 anos; vivenciaremos até o fim do século um encolhimento dessa parcela. Seremos cada vez mais parecidos com a velha Europa. A pergunta incômoda que resiste é: como aproveitamos, nos desenvolvemos e aprendemos durante essa época de ouro?
Quando olhamos os números que refletem o desenvolvimento econômico e social dessa parcela da população, o brilho de uma juventude promissora se esvai rapidamente. Segundo o Atlas da Violência do Brasil, realizado pelo IPEA, jovens negros são quase 80% do total de assassinatos na faixa etária em 2022.
Estamos deixando para trás uma janela histórica demográfica de produtividade, comprometendo os direitos humanos básicos dos jovens no presente, e ainda as estruturas econômico-sociais para os mais velhos no futuro. O país parece exaltar a juventude, mas ao mesmo tempo abandonar as políticas públicas que poderiam torná-las não apenas consumidoras, mas protagonistas de mudanças positivas. Em 1992, a imagem do músico Kurt Cobain, da banda norte-americana Nirvana destruindo uma guitarra bem abaixo de um logotipo de uma marca de cigarro é a mais perfeita tradução de como tratamos a nossa juventude até hoje. Trazendo para os dias atuais, é como se um fabricante de cigarro eletrônico patrocinasse um grande festival de rock.
Para se ter uma ideia, em 2022, segundo a Fundação Roberto Marinho e o Itaú Educação e Trabalho, 9,8 milhões de jovens entre 15 e 29 anos estavam fora da escola e do mercado de trabalho. Desse total, 43% não chegaram a concluir o ensino fundamental; 84% trabalham ou já trabalharam e 67% encontram-se ocupados na informalidade (sem carteira assinada ou vínculo empregatício).
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Ao escutar esses jovens, não é difícil pensar na receita para uma política pública de acolhimento: 73% deles têm intenção de voltar para a sala de aula. Os obstáculos para esse retorno seriam conciliar a necessidade de um emprego imediato e assistir às aulas. As políticas públicas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) previstas na Constituição de 1988 necessitam urgentemente de uma adaptação ou mesmo agregarem outras iniciativas (como auxílio financeiro e modelos mais flexíveis) para que essa parcela da população não seja abandonada à própria sorte. Os dados também clamam para que a educação básica se torne mais próxima da realidade da população.
Entretanto, a diminuição das políticas públicas para os jovens nos últimos dois anos foi o contrário do que seria lógico para um país que parece exaltá-los culturalmente. Conforme dados do Atlas da Juventude, de 2021, durante as gestões de Dilma Rousseff, Michel Temer e o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, a quantidade de iniciativas não teve variações significativas. Já entre 2020 e 2021, houve uma queda drástica no número de iniciativas de políticas públicas para os jovens. Enquanto em 2019 foram mapeadas 50 ações, em 2020 esse número caiu para apenas 26.
A parcela do orçamento federal para essa camada da população segue a mesma lógica. Conforme um estudo do Engajamundo, comparando os anos de 2013 e 2020, houve uma queda de 84,2% na destinação de recursos para o Conselho Nacional da Juventude (Conjuve). Enquanto em 2013 foram executados R$ 683.956 mil para o Conselho, em 2020 a execução orçamentária foi de somente R$ 107.645 mil.
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