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Alexandre Le Voci Sayad

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)

Publicado em 07/11/2022

As diversas linguagens para a educação

Me parece tardio, mas extremamente necessário, que o Brasil tenha aprovado recentemente as Matrizes Curriculares de Computação para a BNCC

Ilustra Sayad A linguagem computacional e a possibilidade de ser aprendida e realizada em casa começaram a gerar rumores da necessidade de uma nova alfabetização nos idos dos anos 2000 Foto: Shutterstock

O canadense Marshall McLuhan, o mesmo que definiu o termo aldeia global como um sinônimo da globalização, definia que “educar significava produzir imunidade contra a televisão”. Ele não era discípulo direto, mas adotou uma postura da Escola de Frankfurt, corrente sociológica que reagiu criticamente à técnica da comunicação de massa. Com a disseminação dos computadores portáteis na década de 1990, a computação entrou, aos poucos, no mundo que antes era ocupado pela linguagem da TV e do rádio, mas apresentando outros paradigmas de técnicas e também de possibilidades.

A linguagem computacional e a possibilidade de ser aprendida e realizada em casa começaram a gerar rumores da necessidade de uma nova alfabetização nos idos dos anos 2000. Foi esse o mote da primeira gestão do presidente estadunidense Barack Obama que, por meio de uma campanha popular, despertou a consciência sobre o tema para o mundo todo. Currículos escolares de educação básica no mundo, desesperadamente, começaram a incorporar elementos de cidadania digital, programação e outros. As diretrizes de que o Brasil dispunha, antes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), foram traídas pelo olhar extremamente instrumental da tecnologia. 

Não precisa estar muito atento para perceber que o universo digital media a comunicação e interação humana com o mundo à nossa volta – isso abre possibilidades infinitas, ao mesmo tempo nos impõe conhecimentos específicos para não serem engolidos por ele. Por isso, me parece tardio, mas extremamente necessário, que o Brasil tenha aprovado recentemente as Matrizes Curriculares de Computação para a BNCC. Trata-se de um importante documento liderado pelo Cieb (Centro de Inovação para a Educação Brasileira) e outras organizações da sociedade civil como o Instituto Palavra Aberta. 

É um documento que precisa ser lido por todos os educadores. Traz elementos curriculares para o desenvolvimento de competências da educação infantil até o ensino médio, respeitando a matriz da BNCC. Explora desde a discussão de como a distribuição desigual de recursos de computação em uma economia global levanta questões de equidade e até estimula a compreensão do conceito de criptografia, na prática.


Leia: Educando para os valores: BNCC e o novo ensino médio


O olhar sobre técnica se mistura muito bem à abordagem da linguagem e cultura digitais (que é uma competên­cia-base da BNCC). Se por um lado dominar aspectos técnicos pode significar interferir, analisar e mixar o mundo digital, por outro é na organização do pensamento e na produção cultural que o estudante encontra sentido e conexão com o que está aprendendo e sua realidade de vida. Assim, é proposto que na educação infantil a ludicidade não deixe de existir quando se esboça uma visão sobre o que significa a linguagem computacional. Até o ensino médio, quando é possível pensar com mais profundidade em temas complexos como a inteligência artificial e seu impacto no universo do trabalho. 

Há duas questões, entretanto, cujo debate é fundamental para gerar mais significado a esse documento. A primeira é como o desenvolvimento dessas atividades pode chegar ao chão da escola pública brasileira. A segunda é como separar as diversas realidades digitais. Pois nem tudo que é digital, é igual, ou seja, funciona sob a mesma premissa. Refiro-me especificamente aqui ao universo da inteligência artificial. 

Sobre a primeira, além dos prejuízos cognitivos e socioemocionais indicados no último Ideb, houve também perdas estruturais nas escolas públicas. Isso inclui equipamento e sobretudo o atraso na chegada de internet banda larga. É possível trabalhar conceitos tecnológicos sem conexão, como realizam algumas lideranças educacionais criativas como o professor Renato Hendrigo, que desenvolveu uma experiência de checagem de notícias sem usar a internet. Mas banda larga é ponto pacífico para uma educação que procure explorar as possibilidades de trilhas de aprendizagem digitais. 

Por outro lado, o princípio da computação, que prevalece na maioria do documento, é bem diferente daquele dos algoritmos que conhecemos e que predomina em nossas vidas. Os primeiros computadores e muitos softwa­res, hoje, realizam tarefas específicas com a utilização de poucos dados (como o Word ou Excel). O princípio da inteligência artificial funciona não como a programação; trata-se de um sistema estatístico de probabilidade que utiliza uma quantidade imensa de dados para seu funcionamento, segundo a cientista em inteligência artificial e ética Dora Kaufman, da PUC de SP. O algoritmo utiliza essa base para tarefas diversas, inclusive aquelas preditivas; e se modifica, ou seja, aprende conforme é utilizado em um ciclo de aperfeiçoamento que depende de diversos fatores.  


Leia: Inteligência artificial: Brasil continua parado e ensino básico perde


Quando conversamos com um algoritmo IA, como em algum chatbot, temos uma mediação diferente do que aquela da computação dita ‘tradicional’. Isso acaba implicando outros impactos éticos na solenidade como uso de dados, privacidade, recorte arbitrário da realidade por algoritmos de recomendação (como no Facebook e Netflix), dentre outros. Trata-se de uma outra linguagem, também digital. 

O que torna o desafio do Brasil ainda maior para escolas é a onipresença de diversas mediações. A televisão e o rádio, alvos da crítica da Escola de Frankfurt, estão mais vivos do que nunca: segundo pesquisas feitas durante a pandemia, esses foram os principais veículos de comunicação pelos quais a população obteve informação. A computação clássica é presente há tempos no cotidiano dos serviços públicos e privados. Já a inteligência artificial, queiramos ou não, ocupa os processos de transformação digital cada vez mais. Olhar para a tecnologia no Brasil no sentido de educar estudantes, professores e famílias deve significar e considerar essa miríade de linguagens – e eliminar, de vez, qualquer olhar instrumental sobre ela. 

Esta coluna Midiática vai explorar mais profundamente aspectos do impacto da inteligência artificial na educação durante os próximos meses. 

Escute nosso episódio de podcast:


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